(Carta Capital, 06/05/2016) Além de ser a quinta maior causa de mortes maternas no Brasil, o despreparo de equipes médicas aumenta a violência contra as mulheres
Uma mulher chegou ao Hospital Geral do Grajaú, em São Paulo, com sangramento vaginal. Ela teria relatado a uma médica que o sangramento decorria do uso, uma semana antes, de uma medicação abortiva. A médica internou a mulher e, em seguida, denunciou-a à polícia.
Enquanto estava no hospital, a paciente teve sua casa revistada por policiais militares e peritos, sem mandado judicial. Eles apreenderam um balde, papéis e pedaços de tecidos com sinais de sangue.
Não houve apreensão de feto ou de medicação abortiva, nem mesmo uma biópsia do que a médica teria identificado como uma placenta por meio de um exame de toque.
Ainda assim, a paciente foi denunciada com base no artigo 124 do Código Penal, que prevê pena de reclusão de um a três anos a quem provocar aborto ilegalmente.
Este é o relato presente no recurso apresentado pela Defensoria Pública ao Supremo Tribunal Federal em 2015, em que também consta que, devido a um incêndio no hospital, não foi possível obter o prontuário da paciente. No recurso, a Defensoria argumenta que houve violação ao direito à intimidade e do domicílio, bem como a inadmissibilidade das provas ilícitas.
Esta é apenas uma das histórias de milhares de mulheres que, se não foram denunciadas à polícia, sofreram também violências físicas, emocionais e psicológicas por parte de membros da equipe médica.
Em 2013, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, realizou um levantamento sobre o aborto no Brasil. A pesquisa revelou que mais de 8,7 milhões de brasileiras com idade entre 18 e 49 anos já fizeram ao menos um aborto na vida, sendo que, destes, ao mínimo 1,1 milhão de abortos foram provocados. Devido à criminalização da prática, o IBGE estima que os dados estão ainda aquém da realidade.
A advogada Gabriela Ferraz, do CLADEM, uma organização que articula pessoas e organizações feministas na América Latina, fez um levantamento em conjunto com os distritos policiais de São Paulo. Buscando por mulheres presas pelo crime 124, encontraram boletins de ocorrência narrando a situação em que a mulher foi encontrada no hospital.
Nestes relatórios, duas situações eram comuns: o socorro era prestado, mas alguém do corpo médico acionava a polícia ou, assim que diagnosticado o motivo que levou a mulher ao hospital, o atendimento se tornava lento e hostil.
“Vimos horas de espera em corredores, atendimento não adequado e violência psicológica de médicos e enfermeiras dizendo ‘você que provocou isso, agora vai pagar, vai ter que sofrer, vai ter que sangrar’”, relata.
Gabriela compilou, entre janeiro e outubro de 2014, 111 inquéritos abertos pelo crime 124. “Esse número é muito volátil porque elas vão presas, mas costumam responder em liberdade. Além da violência, isso traz muitas consequências práticas, como não poder sair do país, fazer empréstimos ou prestar concurso”.
Para ela, o problema estrutural é uma das causas dessa violência e, ao mesmo tempo, um dos motivos que levam mais mulheres a realizar o aborto clandestino. “Em 2013, de todos os hospitais do Brasil, apenas 66 tinham serviço de aborto seguro. Isso mostra o nível de despreparo do país”.
Além dessas questões práticas, segundo Gabriela, há ainda um motivo de ordem moral: “as pessoas confundem algumas questões de esfera pública com privada, e morais com as profissionais, sendo que a mulher foi ao serviço de saúde para receber um direito constitucionalmente garantido e livre”.
Em um país majoritariamente católico, a noção de pecado em relação ao aborto ainda é muito forte e, aliada à proibição pela Constituição, reforça a carga negativa em torno do aborto. Essa é a avaliação de Rosângela Talib, coordenadora do Católicas Pelo Direito de Decidir, que percebe uma contradição na sociedade.
“Em todas as palestras que dou, pergunto quem conhece alguém que já fez um aborto. Cerca de 70% da plateia sempre erguem a mão. Ainda assim, os valores religiosos estão muito disseminados e embasam as ações preconceituosas, mesmo em casos previstos em lei”, diz.
Talib explica que, para o Magistério da Igreja Católica, em questões morais difíceis de decidir, deve-se recorrer à consciência, porque há o livre-arbítrio para isso: “Falando do modo cristão, devemos dar apoio e ter compaixão por essas pessoas, elas não podem ser julgadas por nós”.
Ela também lembra que a maternidade é um processo social e afetivo, para além de biológico, que envolve questões como o desejo de ser mãe, estar no momento adequado para isso, avaliar se tem condições de manter essa criança e cuidar de seu desenvolvimento.
“As mulheres não fazem aborto como quem vai ao cabeleireiro, é sempre uma decisão muito pensada e difícil porque tem um peso emocional, porque sabem que estão colocando em risco sua vida, que elas podem ter sequelas gravíssimas. Do jeito que falam, parece que se legalizarem elas vão fazer fila na porta do hospital, mas nenhuma mulher gostaria de passar por isso, não é agradável”, diz Talib.
A defensora pública Ana Rita Souza Prata afirmou que a Defensoria procura informar às mulheres seu direito a um atendimento humanizado, sigiloso e sem julgamentos, independentemente da natureza do aborto. Além disso, prestam auxílio jurídico a essas mulheres.
“Nesse caso que levamos ao STF também questionamos a legalidade da denúncia por parte de um médico, já que o desrespeito ao sigilo é quebra de dever ético. Esse também é o entendimento do Conselho de Medicina”.
Para sua proteção, um profissional da saúde tem direito de acusar objeção de consciência quando sente que não tem confiança adequada para prestar assistência. “O médico tem esse direito de resguardo, mas ele deve passar o atendimento a outro colega que vá atender o paciente, não pode negar atendimento simplesmente”, lembra Gabriela.
Denúncia fere Constituição e código de ética médica
Ao acionar a polícia, um profissional fere o princípio de igualdade da Constituição Federal, além do código de ética médica em duas instâncias: o sigilo médico e ao fornecer informações do prontuário médico à Justiça.
“Mesmo em caso de processo judicial aberto, o médico não pode fornecer informações à Justiça. Um profissional que atua em desrespeito com seu código de ética está sujeito a processo disciplinar e a ser cassado e não poder mais atuar”, diz a advogada do CLADEM.
Ana Prata afirma que descriminalizar o aborto vai inicialmente permitir que as mulheres que desejam abortar o façam de forma segura, em locais especializados, evitando, assim, atendimentos de emergência após o aborto inseguro. “Esse tipo de aborto gera um dos maiores gastos do SUS em procedimentos e internações feitos para tratar suas complicações e é quinta maior causa de morte materna em nosso país”.
O Uruguai, onde o aborto foi legalizado em 2012, é exemplo de redução de mortes. Em 2015, o Ministério da Saúde divulgou em seu relatório informações sobre a prática do aborto em 2014: 6.676 interrupções e nenhuma morte. A única morte registrada em decorrência de aborto foi praticada clandestinamente. Em 50 casos, 0,007% do total, houve complicações leves.
Outra informação presente no relatório mostra que cresceu em 30% o número de mulheres que desistiram de interromper a gravidez após o início do processo de aborto legal, dentre os motivos, pelo trabalho da equipe multidisciplinar que atende as pacientes. Antes de decidir sobre a interrupção, as mulheres conversam com um ginecologista, psicólogo e assistente social.
“A proibição só acontece para uma parte das mulheres: negras e pobres. Legalizar o aborto vai reduzir o número de mortes, principalmente dessas mulheres, porque o aborto só é proibido para quem não tem dinheiro”, afirma Gabriela.
Acesse no site de origem: “O aborto só é proibido para quem não tem dinheiro”, por Ingrid Matuoka (Carta Capital, 06/05/2016)