Ações no Supremo Tribunal Federal reacendem o debate: o Estado deve limitar o direito da mulher de interromper uma gestação?
(Época, 31/05/2017 – acesse no site de origem)
O aborto é tema de um debate feroz e perene na sociedade – ele se encontra na confluência de outras áreas em mudança veloz e que geram embates quentíssimos: direitos da mulher, comportamento sexual e serviços de saúde. Apesar disso, a legislação sobre aborto no Brasil pouco mudou ao longo das décadas. A interrupção da gravidez já era considerada crime no período imperial (sem punição se praticado pela gestante). Em 1940, o Código Penal oficializou o aborto como crime contra a vida e fixou penas: até três anos de prisão para as mulheres. A interrupção só era autorizada se a gestação oferecesse risco de morte para a mãe ou resultasse de estupro. Apenas em 2012 uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou o aborto em casos em que o feto tivesse malformações graves no cérebro e no crânio, incompatíveis com a vida. A epidemia do vírus zika e milhares de bebês nascidos com lesões cerebrais graves reabriram o debate. Desde agosto de 2016, tramita no STF uma ação que propõe incluir a infecção pelo zika como uma das situações de exceção que autorizam o aborto. Não é a única. Em março, o Psol protocolou uma ação em que pede a ampliação do direito ao aborto para qualquer mulher até a 12ª semana de gestação. O pedido obrigará os Três Poderes a se posicionar.
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Mudanças significativas podem acontecer. Em novembro, durante o julgamento de um pedido de habeas corpus de réus acusados de manter uma clínica clandestina de aborto, a primeira turma do STF considerou que eles não deveriam continuar presos por não haver os requisitos que autorizam a prisão preventiva – além de afirmar que a criminalização do aborto até as 12 semanas feria direitos fundamentais, como os sexuais e reprodutivos. A decisão não alterou o status jurídico do aborto, mas foi considerada indicativa de que o STF está aberto a questionar a atuação do Estado brasileiro no tema. Já no Congresso, há sinais de que parlamentares podem incluir na Constituição uma definição de início da vida mais específica. Em maio, o senador Eduardo Amorim (PSDB/SE) deu parecer favorável para o avanço no Senado da Proposta de Emenda Constitucional que define o início da vida a partir da fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Se aprovada, a nova definição pode alterar políticas de direitos reprodutivos, como o acesso a alguns métodos contraceptivos, além de dificultar a descriminalização do aborto.
“O papel do Estado é garantir as condições para a vida digna. Isso significa proteger as mulheres em suas decisões de aborto”, afirma a antropóloga Debora Diniz, atualmente pesquisadora da Universidade Yale, nos Estados Unidos, e uma articuladora veterana em favor da descriminalização. A posição pró-escolha feminina enfrenta, na sociedade e no governo, a oposição de grupos contrários à descriminalização, especialmente ligados a algumas crenças religiosas. “A solução não passa pelo aborto, mas por enfrentar as situações que levam a ele”, diz o professor de bioética Dalton Ramos, da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo, ex-membro da Pontificia Academia Pro Vita, entidade que assessorava o Vaticano em temas de bioética.
ÉPOCA – O debate sobre como delimitar o início da vida é um grande entrave à discussão entre grupos que defendem e que contestam a descriminalização do aborto. Ele é fundamental à discussão?
Dalton Ramos – As questões religiosas se colocam, mas dizem respeito especificamente aos crentes. A biologia firma a minha convicção de que a vida começa a partir do exato momento da fecundação. Pela junção de dois gametas, temos uma realidade biológica que é totalmente diferente do pai e da mãe com autonomia em uma série de processos de seu desenvolvimento. A embriologia confere terminologias distintas para as etapas do desenvolvimento. A título do nosso diálogo, vou chamá-lo de embrião. Não podemos reduzi-lo a um aglomerado de células para esvaziar o impacto da interrupção. Se não há vida no embrião, então o aborto é um procedimento que você pode fazer, mas que o Estado impede porque existe uma lei que diz que é crime. Se reconhecemos que a vida começa na fecundação, o aborto é uma interrupção de vida. E não é um direito das pessoas de acabar com uma vida.
Debora Diniz – Não tenho nenhum reparo ao marco interpretativo feito pelo Dalton. Minha inquietação é: por que esse marco define colocar uma mulher na cadeia? Temos vida em diferentes expressões das células humanas, e não só no embrião, para que isso seja suficiente para criminalizar condutas. Não descreveria o embrião como um aglomerado de células, mas também não usaria adjetivos como complexo. Há complexidade no DNA de um fio de cabelo. Quero concordar com você que as mulheres vivem essa experiência da gravidez muitas vezes com felicidade. Mas há casos em que não. Aos 40 anos, uma em cada cinco mulheres já fez pelo menos um aborto no Brasil, segundo uma pesquisa que publicamos em 2010, a pedido do Ministério da Saúde. Há momentos na vida da mulher, seja pelo aborto espontâneo, por uma gravidez não planejada, por violência sexual, em que ela viveu essa condição biológica e seu significado com um impacto diferente. Não quero ver essas mulheres morrendo, sentindo medo. Quero cuidar delas, e uma forma de cuidar é retirar a criminalização.
ÉPOCA – O aborto é polêmico se considerado como um conflito entre a autonomia da mulher e a do embrião. Para chegar a um diálogo entre grupos contra e a favor, é possível colocar a discussão em outros termos?
Ramos – Temos de cuidar, como a Debora muito bem colocou. Isso implica políticas públicas e ações comunitárias que apoiem as mulheres em situações de violência ou de um diagnóstico de malformação. Despenalizar simploriamente significa endossar o aborto como um ato válido. É muito importante investir em ações que valorizem as pessoas. Com certeza, o aborto ficará em segundo plano. Todas as mulheres são culpadas por causa de um aborto? Não, não são culpadas. Existe um contexto que muitas vezes as leva a ações de que também são vítimas.
Diniz – O Dalton e eu concordamos que temos um quadro de necessidades de saúde e de vida. São demandas por cuidados, dos quais o aborto é uma parte. Uma mulher que demanda o aborto tem uma série de necessidades que não foram satisfeitas para uma vida digna. Seja acesso à informação, a métodos contraceptivos, a presença – ou não – de um companheiro. Muitas vezes essa decisão é feita em conjunto. Jamais defenderei a banalização do aborto. Mas ele é parte das necessidades para as mulheres terem uma vida digna.
ÉPOCA – Qual seria o impacto de descriminalizar o aborto?
Diniz – Descriminalizar o aborto é permitir sua redução, como sugerem estudos de saúde pública em países que já o fizeram. Permite chegar às necessidades de vida da mulher que recorre a ele. Quando há criminalização e a mulher tem medo de ser denunciada à polícia, o que hoje acontece no Brasil, ela não fala a verdade quando entra no hospital. Os motivos que a levaram ao aborto são mantidos em segredo, no medo e no estigma.
Ramos – A solução não passa pelo aborto, mas por enfrentar as situações que levam a ele. O aborto não resolve a questão da jovem, quase adolescente, que engravidou, não resolverá a violência hedionda do estupro. Pelo que acompanhei nestes anos, cresce para mim uma convicção – o aborto causa um mal. Ser ajudado e vencer essa primeira intenção a favor do aborto traz um bem. As pessoas crescem e podem dizer que vivem felizes. Não necessariamente de uma forma fácil, porque a vida nem sempre tem circunstâncias fáceis. Mas são felizes porque encontraram os significados.
ÉPOCA – O aborto inseguro no Brasil é um problema de saúde ou de renda?
Diniz – A criminalização favorece um mercado que não tem vigilância sanitária, não garante necessidades de proteção de saúde e pode levar mulheres à morte. Não digo que, por causa da desigualdade, a dor da criminalização é vivida apenas pelas mulheres pobres. Ela é vivida por todas. Só que os riscos são vividos de maneiras diferentes – quanto mais pobre, mais vulnerável. Há mulheres brancas e ricas, talvez minhas alunas na Universidade de Brasília, que talvez peguem um avião para fazer um aborto. Elas não enfrentarão o dilema do crime. Esses dias eu ouvi a história que mais me tocou nestes 20 anos de pesquisa. Uma mulher de 20 e poucos anos injetou uma solução cáustica no útero. Ela não só perdeu o útero, como perdeu parte das extremidades dos membros, mãos e pés. Essa mulher não sabia das consequências de injetar uma solução cáustica. Mas sabia que, já tendo filhos, não podia ter mais um. Podemos assumir a agenda integral de cuidados, políticas públicas e ações comunitárias sugeridas pelo Dalton. Não conseguiremos fazer a revolução para garantir que as condições ótimas estejam presentes na vida de cada mulher no instante da decisão. Há momentos na vida de uma mulher e de seu companheiro ou de uma mulher sozinha em que ela diz “não posso”, “não quero”, “não consigo”. A descriminalização permitirá que as mulheres vivam a seu modo o impacto de decidir pelo aborto, mas sem medo de morrer nem de praticar um crime.
Ramos – A atitude dessa mulher que usou uma substância cáustica é causada por muito desespero. Não sei se a eventualidade de uma lei que descriminalize o aborto resolveria questões como essa e das clínicas que fazem não aborto, e sim carnificina. É muito bonito dizer que depois o Sistema Único de Sáude [SUS] dará assistência a todas as mulheres que precisem. Temos de considerar também a precariedade dos serviços públicos de saúde. O SUS também deveria cuidar de febre amarela, câncer…
ÉPOCA – Em novembro de 2016, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sinalizou não considerar o aborto como crime até o terceiro mês. A decisão revogava a prisão preventiva de pessoas que trabalhavam numa clínica de aborto clandestina. Uma dessas pessoas estava envolvida, em outro caso, no aborto inseguro de uma jovem de 27 anos que morreu e cujo corpo foi carbonizado. O que essa decisão diz sobre o estágio atual do debate do aborto no Brasil?
Diniz – A decisão do STF não foi sobre aborto, e sim sobre prisão preventiva, uma discussão importante no sistema penal brasileiro. As pessoas ficam presas sem o devido processo legal. Só que um ministro, durante o julgamento, disse que também havia um tema de fundo, o aborto, e que também cabia a discussão se era crime ou não. Foi um giro sobre várias camadas de questões punitivas, impostas pelo Estado brasileiro. No final, o resultado é meio torto. O que o Supremo fez sobre aborto ali foi nada. Não se descriminalizou o aborto, não se fez discussão sobre nada.
Ramos – Minha preocupação é que, em termos de opinião pública, repercutiu como sendo uma decisão do Supremo reconhecendo que a vida começa só a partir do terceiro mês e que o aborto seria permitido. Vai se criando imagens sobre o entendimento do Judiciário a respeito do aborto que podem não corresponder à própria intenção do Judiciário. Eu lamento.
ÉPOCA – Uma ação ajuizada no STF, questionando a constitucionalidade da criminalização do aborto, obriga os Três Poderes a se manifestar. O Executivo disse que o Legislativo tem de debater a questão. O Legislativo diz considerar o atual marco legal adequado e que o STF não deve invadir sua competência. Falta a posição do Judiciário. Como o Estado deveria se posicionar?
Ramos – Ficaria muito preocupado com uma decisão, qualquer que fosse, de gabinete. Fiquei satisfeito por o Planalto ter dito que não seria ele a entrar no mérito porque, de fato, é um debate que tem de ser da sociedade. Se essa ação tiver um encaminhamento legislativo, me preocupa. Como também me preocupa o cenário desse Legislativo, neste momento histórico que estamos vivendo, embora saibamos que há políticos honestos.
Diniz – O papel do Estado é garantir as condições para a vida digna das mulheres. Isso significa falar abertamente de sexualidade, de planejamento familiar, de oferecer alternativas ao aborto e de, sim, proteger as mulheres em suas decisões de aborto. Mesmo com tudo isso, haverá mulheres que dirão “não quero”, “não posso”, “não consigo”. Não podemos deixá-las desamparadas.
Por Marcela Buscato