Como é possível que estados que elegeram Trump tenham ampliado direitos reprodutivos ao aborto?
Junto à vitória de Donald Trump, curiosamente também triunfou a ampliação do acesso ao aborto legal em diversos estados.
O eleitorado norte-americano é complexo e, para nós, brasileiros, um paradoxo: como é possível que estados que elegeram Trump também tenham ampliado direitos reprodutivos ao aborto? Isso ocorre porque, em dez estados, a população foi consultada diretamente sobre o tema por meio dos chamados ballots, um mecanismo semelhante mas não idêntico ao que no Brasil são os plebiscitos ou referendos.
Ao contrário de 2016, quando Trump adotou uma postura marcadamente pró-vida, desta vez teve uma posição moderada, revelando pragmatismo eleitoral. Nada muito surpreendente, até porque, antes de ingressar na política, Trump já era pró-escolha e essa visão ressurgiu de maneira estratégica durante a campanha de 16.
Enquanto Kamala Harris apostou fortemente na pauta de ampliação dos direitos reprodutivos, enfrentou dificuldades em outra pauta central em 2024: imigração. Trump, por sua vez, conseguiu equilibrar os dois temas, ainda que com concessões. Até mesmo a futura primeira-dama Melania Trump contribuiu ao se declarar pró-escolha em um movimento calculado durante o lançamento de sua autobiografia.
O resultado nas urnas reforçou a complexidade do eleitorado norte-americano e a inaptidão de Kamala em convencer o eleitor médio. Em 7 dos 10 estados onde o aborto foi tema de ballots, a pauta pró-escolha venceu.
Destes, quatro (Arizona, Nevada, Montana e Missouri) também elegeram Trump, demonstrando que o eleitorado norte-americano nem sempre segue linhas partidárias rígidas. Colorado, Maryland e Nova York reafirmaram seu compromisso histórico com os direitos reprodutivos.
Nos três estados onde a pauta foi rejeitada, o contexto varia. Na Flórida e em Nebraska, o aborto já é permitido, mas com limites específicos: seis semanas de gestação na Flórida e 12 em Nebraska —ambos mais permissivos do que a legislação brasileira. Na Flórida, 57% dos eleitores manifestaram-se favoráveis à ampliação do direito ao aborto. No entanto, o avanço dependia de uma maioria qualificada de 60%, e por isso não foi aprovado. Esses dados revelam que, mesmo onde a pauta não avançou formalmente, a maioria da população já sinaliza apoio à flexibilização.
O resultado na Dakota do Sul, no entanto, apesar de negativo, não pode ser considerado um retrocesso. Manteve-se uma das legislações mais restritivas dos EUA (pior até mesmo que no Brasil), permitindo o procedimento apenas em casos de risco à vida da mãe, sem exceções para estupro ou incesto.
A vitória de Trump, mesmo marcada por uma retórica conservadora, não impediu que a pauta pró-escolha avançasse em estados estratégicos, revelando que direitos individuais como o aborto continuam mobilizando a sociedade norte-americana.
O avanço registrado nas urnas demonstra que, apesar dos desafios, há um movimento contínuo em direção à ampliação das liberdades individuais.