(Veja São Paulo, 06/11/2015) Ele atua no Hospital Pérola Byington, que é campeão no país em interrupções de gravidez permitidas pela lei em mulheres vítimas de violência sexual
De tempos em tempos, flashes dos cinco minutos de horror e humilhação assombram a memória da empregada doméstica Alessandra*, de 32 anos. Com a voz embargada e sem conseguir conter as lágrimas, ela conta que tudo aconteceu no início da noite de uma terça do mês de julho, em um bairro da Zona Sul, quando estava saindo do trabalho. Por volta das 19h30, sofreu a abordagem de um sujeito alto e armado, que a abraçou como se fosse seu namorado. Assustada, não teve alternativa a não ser ceder e acompanha-lo. “Fui arrastada para um canto escuro e violentada”, lembra. “Temia tanto pela minha vida que não consegui gritar.”
Em seguida, o bandido a largou no chão e fugiu. Ainda abalada, Alessandra entrou no ônibus e se dirigiu para casa. “Eu me sentia suja, envergonhada”, diz. “Não contei a história nem para o meu companheiro, com quem estou há quatro anos, por medo de que ele me deixasse.” Depois disso, tomou a pílula do dia seguinte na esperança de evitar uma gravidez. Para seu desespero, no entanto, descobriu em outubro que estava com uma gestação de catorze semanas. Mãe de duas meninas, uma de 12 e a outra de 13 anos, ela decidiu que não teria a criança. Em uma pesquisa na internet, ficou sabendo que, enquanto vítima de violência sexual, poderia procurar a rede pública de saúde para realizar um aborto. Trata-se de um direito garantido pela Justiça brasileira desde 1940. Aliviada, achou que o drama poderia ser resolvido rapidamente.
Não foi assim. Primeiro, bateu à porta do Hospital Municipal Doutor Arthur Ribeiro de Saboya, no Jabaquara, que realiza o procedimento desde 1989 e se tornou um dos pioneiros do país nessa área (apesar de o Código Penal garantir às mulheres direito há muito tempo, várias décadas se passaram até que a lei começasse a ser de fato cumprida). No local, os funcionários teriam se recusado a atender Alessandra. “Disseram que fariam o aborto se eu estivesse com no máximo doze semanas de gravidez”, afirma.
Na verdade, a norma do Ministério da Saúde sobre o assunto permite a interrupção com até 22 semanas, desde que o feto pese menos de 500 gramas. Depois disso, a doméstica tentou o Hospital São Paulo, na Vila Clementino. Novamente, perdeu tempo. Acabou encaminhada ao Pérola Byington, no centro. Ali, recebeu atendimento quase imediatamente. Após dois dias de exames e consultas com vários especialistas, ganhou da equipe do hospital, chefiada pelo obstetra Jefferson Drezett, quatro comprimidos de misoprostol, vendido comercialmente sob o nome de Cytotec.
Originalmente prescrito para o tratamento de úlceras, o remédio passou a ser usado como abortivo, pois provoca contrações no útero, o que resulta na expulsão do feto. “Senti apenas algumas cólicas”, recorda-se Alessandra, que é católica mas não vai à igreja com frequência. “Não me arrependo. Deus pode me perdoar, pois não ia querer outra criança sofrendo no mundo.”
Dramas como esse fazem parte da rotina do doutor Drezett desde 1994, quando montou o Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal do Pérola Byington, hospital que pertence à rede estadual de saúde. De cabelos castanhos com mechas brancas caindo pelos ombros e um brinco de pérola na orelha direita, o obstetra tem um visual de roqueiro das antigas (é fã de Pink Floyd, AC/DC e Rolling Stones) e encara com naturalidade o dia a dia heavy metal, repleto de episódios chocantes. “No começo, comentava em casa com minha mulher os casos das pacientes, mas, depois de um tempo, ela me pediu para parar, pois sofria muito ouvindo esse tipo de coisa”, diz ele, que vive há mais de três décadas com uma dentista (o casal tem um garoto de 17 anos) em um condomínio fechado em Alphaville.
Fora uma breve interrupção entre 2002 e 2003, quando excursionou por sete países da América Latina dando palestras sobre o assunto, o doutor Drezett nunca deixou de cuidar do dia a dia do Pérola. O hospital realiza por mês mais de dez procedimentos do tipo, sendo o campeão nacional nesse campo. Pela excelência do trabalho ali realizado, ganhou, no ano passado, um prêmio do Banco Mundial na categoria iniciativas regionais ligadas à violência de gênero. No Pérola, com até doze semanas de gravidez, a paciente passa por uma aspiração intrauterina. Depois desse prazo, o recomendável é o misoprostol. Muitas vezes, o próprio Drezett encarrega-se da operação. Segundo seus cálculos, fez mais
de 600 abortos até hoje. “Jamais tive problema algum de consciência”, garante. “Pelo contrário, fico satisfeito em garantir que esse direito das mulheres seja assegurado aqui.”
A questão do aborto legal vem sendo muito discutida devido ao recente projeto de lei do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Ele quer dificultar essa operação no país. A proposta, que passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no dia 21 de outubro, prevê, entre outras coisas, a obrigatoriedade de um boletim de ocorrência para a realização do procedimento (atualmente, basta a palavra da vítima no hospital) e mais restrições à venda de medicamentos considerados abortivos no Brasil. Na prática, segundo os críticos da ideia, isso poderia impedir por aqui até a comercialização da pílula do dia seguinte, droga hoje vendida livremente nas farmácias. Nas últimas semanas, vários grupos foram às ruas em São Paulo para protestar contra Cunha.
Uma das manifestações reuniu cerca de 5 000 pessoas na Avenida Paulista. No último dia 31, as paredes da Catedral da Sé amanheceram com pichações de expressões como “útero laico” e “ventre livre”. O projeto do presidente da Câmara ainda precisa passar por outras instâncias de aprovação no Congresso, mas preocupa especialistas em saúde pública. “É um desrespeito à condição feminina e um atestado de ignorância”, ataca Drezett. “Não bastasse ser estuprada, a mulher tem de passar pelo constrangimento de ir a uma delegacia para provar que não é uma mentirosa.”
No protocolo do serviço do Pérola, a pessoa com queixa de gravidez decorrente de estupro é atendida pelo setor administrativo e direcionada à realização de uma ultrassonografia. Na sequência, passa pelo grupo de assistentes sociais. “As vítimas chegam aqui com um sofrimento aprisionado muito grande”, relata Maria Estela Moura, uma das profissionais da área. “Na maioria das vezes, eu sou a primeira pessoa que escuta o relato delas.” A paciente é encaminhada depois para o time de psicólogas. “O mais importante é ver se a mulher está consciente da decisão que está tomando”, afirma Daniela Pedroso, uma das especialistas do setor. “Dizemos também que ela pode optar por ter a criança, criá-la ou entregá-la à adoção.”
Há ainda o atendimento de um ginecologista. Ao final, o processo é discutido por uma equipe multidisciplinar do hospital, responsável por definir se o aborto será ou não realizado. Cerca de 20% dos casos terminam vetados. Na maioria das vezes, isso se dá pelo fato de a gravidez estar muito avançada ou quando se conclui que a data da suposta violência não condiz com o tempo de gestação. Nos processos aprovados, aproximadamente 10% das mulheres desistem às vésperas de tomar o misoprostol ou passar pela aspiração intrauterina. “Certa vez, uma delas mudou de ideia após receber a visita da avó, que lhe pediu para reconsiderar a decisão”, relata Drezett. “Diante disso, respeitamos a vontade da paciente e nunca obrigamos ninguém a seguir em frente”, completa.
Do total de abortos autorizados no Pérola, 65% ocorreram com mulheres adultas e 35% com crianças e adolescentes. Pacientes de classe média recorrem ao hospital, mas a maior parte vem de famílias mais pobres. Quando o caso envolve vítimas menores de 15 anos, o agressor está próximo ou dentro de casa. São padrastos, tios, cunhados e até mesmo os próprios pais e avôs. Foi o que aconteceu com a estudante Maria, que ficou grávida aos 14 anos, após estupros diários cometidos pelo padrasto, de 67, nos horários em que a mãe ia trabalhar fora. “Era só a esposa sair de casa que ele já começava os ataques”, conta a psicopatologista Sônia Regina Maurelli, fundadora da Casa de Isabel, instituição no Itaim Paulista que acolhe vítimas de violência. Com a ajuda da entidade, a menina fez o aborto em novembro de 2014, no Pérola Byington. A equipe do hospital realizou o teste de DNA, comprovando que o padrasto era o agressor. Ele foi preso e condenado a vinte anos de cárcere.
As maiores de idade costumam ser atacadas na rua por desconhecidos, parceiros ou ex-namorados. Na semana passada, com as mãos suando frio e muito apreensiva, a boliviana Paloma, 19, encontrava-se no hospital esperando atendimento. Ela está grávida de um mês, após sofrer um estupro no Brás. “Era de noite, eu ia para a oficina de costura onde trabalho e moro quando fui levada para dentro de um carro com dois brasileiros”, relata ela, que não fala português e está, sozinha, há apenas três meses no país. “Eles me pegaram à força e taparam a minha boca.” Com medo de ser deportada (vive irregular no Brasil), custou a contar a alguém o que ocorrera. “Agora, quero voltar para a Bolívia quanto antes e sem esse filho.”
O Pérola recebe muitas pacientes de fora de São Paulo e até de centros de saúde da própria capital. Isso explica por que o total de abortos mais que triplicou no hospital de 2010 para cá. Nesse período, foram realizadas ali 553 interrupções de gestação, contra 33 procedimentos do tipo nos seis hospitais municipais da cidade indicados pela prefeitura como referência na área. “É uma tremenda falta de respeito com as mulheres, que poderiam ser atendidas nessas redes mais próximas de suas casas”, critica Ana Paula Meirelles, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher. “A negativa de acesso é tão grave quanto a violência sofrida”, completa a promotora Silvia Chakian, do grupo de enfrentamento à violência doméstica do Ministério Público de São Paulo, que promete investigar esses casos.
Apesar do problema do funil que sobrecarrega sua equipe, o médico Drezett demonstra ter orgulho do trabalho da sua turma. Nascido em São Caetano do Sul, cursou medicina na Universidade São Francisco, em Bragança Paulista. Especializou-se em obstetrícia e ginecologia pela Universidade Estadual de Campinas. Foi lá que realizou seu primeiro aborto legal, em 1988, quando fazia residência no hospital da Unicamp, na mesma cidade. “A chefe do setor disse: ‘Eu vou sair para tomar um café e quero que você realize esse procedimento. Se eu voltar e você não estiver aqui, vou entender’”, conta. “Refleti sobre aquilo durante cinco minutos, que era o tempo de preparo do centro cirúrgico, e decidi fazer, na maior tranquilidade, pois não havia nada de errado”, afirma.
Com salário mensal de cerca de 5 570 reais, Drezett complementa a renda trabalhando em sua clínica particular de ginecologia e obstetrícia no Itaim Bibi. Cobra 400 reais por consulta e costuma realizar partos (dois a cada trinta dias, em média) em maternidades como o Santa Joana. Apesar da atenção que dispensa a essas pacientes, não disfarça ter um carinho especial pelas mulheres do Pérola. “Quando comecei lá, eu era o único a fazer o procedimento no hospital”, conta. “Até hoje, há colegas que se recusam a entrar nessa área”, completa. Drezett já ouviu em eventos públicos insultos como “aborteiro” e “abortista”.
O doutor foi coroinha na infância e frequentou escolas dirigidas por freiras e padres. Por volta dos 30 anos, porém, assumiu ser ateu. Se não fosse assim, teria dificuldade em lidar com a atual rotina? “Aqui não é uma igreja, é um hospital público, com o dever de ser laico”, responde. Ele conta ter demitido um ultrassonografista que, mesmo orientado, insistia em mostrar os batimentos cardíacos fetais e as imagens para a paciente, como forma de convencê-la a desistir. “As pessoas que apresentam alguma objeção ao aborto legal têm todo o direito de não trabalhar aqui”, afirma o médico. A única “religião” de Drezett é o bem-estar das vítimas de violência sexual que chegam ao Pérola. “Considero uma missão dar dignidade a elas em um momento tão difícil”, resume.
Centro de referência
Em quatro anos, o número de abortos legais mais que triplicou
2010 – 48
2011 – 74
2012 – 116
2013 – 137
2014 – 178
Antes da cirurgia
O passo a passo do trâmite necessário para que os médicos realizem a intervenção
- A mulher com queixa de gravidez decorrente de estupro é atendida pelo setor administrativo e direcionada à realização de uma ultrassonografia (não é obrigatória a apresentação de boletim de ocorrência)
- Na sequência, a paciente é encaminhada a uma assistente social e depois a uma psicóloga; por último, a um médico, que fará uma consulta ginecológica
- Após a análise dos exames, a equipe multidisciplinar discute o caso
- O aborto só pode ser realizado com, no máximo, 22 semanas de gestação e quando o feto pesa menos de 500 gramas
Adriana Farias
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