(Nexo, 06/04/2016) Invenção que substitui os absorventes existe há 80 anos, mas só pegou agora. Aspectos sociais e culturais explicam a adesão recente
O coletor menstrual, um copinho de silicone que substitui o uso de absorventes para as mulheres durante o período menstrual, ainda é novidade para muita gente.
Com a demanda, o mercado brasileiro começou a oferecer várias opções de coletores menstruais. Em 2015, as duas primeiras fabricantes de coletores chegaram ao país. Uma delas tem registrado crescimento mensal de 200% nas vendas desde a inauguração.
Mas o ‘copinho’ – como é chamado popularmente – é uma invenção antiga: o primeiro coletor menstrual, bem parecido com o modelo que é vendido hoje, foi patenteado em 1937 pela inventora e atriz americana Leona Chalmers.
Nos grupos especializados no tema, os relatos das mulheres que usam coletores menstruais são majoritariamente positivos: é comum ler que o uso do coletor é “libertador” e “gostaria de ter descoberto isso antes”.
Por que, então, o coletor menstrual demorou tanto tempo para pegar? A resposta pode estar ligada a estigmas culturais que colocam os fluídos e o corpo femininos como ‘impuros’ – e com o rompimento desses estigmas pelo feminismo contemporâneo.
O uso do coletor menstrual demanda uma manipulação direta do corpo feminino pela mulher, uma prática que ainda é um tabu cultural pelos mesmos motivos que a masturbação feminina.
No livro ‘Sangue, Fertilidade e Práticas Contraceptivas’, da antropóloga Ondina Fachel Leal, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a autora fala sobre as manifestações de nojo e repulsa que as mulheres geralmente têm em relação ao seu próprio sangue menstrual, enquanto o sangue de um ferimento não provoca a mesma repulsa ou nojo.
“Há um estranhamento em relação ao cheiro e ao estado deste sangue, que é identificado como ‘forte’, ‘nojento’, ‘grosso’, ‘pastoso’”, destaca Ondina. Para a autora, isso indica a não-identificação do sangue menstrual como uma substância própria da mulher, algo dissociado do próprio corpo.
No Facebook, em um dos vários grupos com milhares de mulheres que buscam dicas e dividem relatos sobre o uso do coletor menstrual, muitas contam estar em dúvida sobre o uso por ‘nojo’ ou ‘apreensão’ de enfiar algo no canal vaginal e perguntam sobre o ‘cheiro’ do sangue.
O receio com esses temas é tal que os próprios fabricantes usam argumentos que buscam quebrar esses tabus na comunicação de venda do produto: a peças publicitárias das principais marcas bate nas teclas de que o copinho é fácil de colocar, o contato com o sangue não acontece se o coletor for usado corretamente, é menos invasivo do que parece, é confortável e higiênico.
A impressão ruim geralmente se desfaz depois do primeiro uso ou da troca de informações, pela internet, com outras mulheres que já usam coletor. “Quando eu li sobre [o coletor] achei muito estranho. Não tinha a menor noção de como o sangue poderia ficar lá, tinha nojo de despejá-lo na pia, do cheiro, de lavar”, disse ao Nexo a jornalista Sara Heck, que usa o coletor menstrual há sete meses.
Depois de quatro meses lendo experiências positivas de outras mulheres sobre o uso de coletor menstrual, na primeira tentativa ela acabou se sujando com o sangue na hora de remover o coletor para higienização – mas isto não foi ruim. “Tudo mudou quando nesse episódio eu percebi que o sangue [menstrual] é sem cheiro, é limpinho. Comecei a olhar o coletor com carinho”, diz.
O mau-cheiro do sangue menstrual acontece quando a substância fica em contato com o ar. Como o coletor recolhe a menstruação em um vácuo dentro do corpo da mulher, o sangue não entra em contato com o ambiente e não escurece ou adquire mau-cheiro, tal como acontece quando a mulher usa um absorvente externo.
Para especialistas, o coletor menstrual ganhou espaço com o resgate do feminismo. A professora de medicina preventiva da Universidade de São Paulo Ana Flávia Pires Luca D’Oliveira, especialista em violência de gênero e serviços de saúde da mulher, em entrevista ao Nexo, diz que o coletor foi “interditado” desde o começo justamente porque tinha a ver com manipular o corpo da mulher.
“Não era visto como adequado socialmente a mulher conhecer seu próprio corpo e tocá-lo. E eu acho que esse feminismo que está chegando, das meninas [mais jovens], está revendo questões que já foram colocadas nos anos 70, de reapropriação da mulher sobre o corpo e de combate ao estigma de coisa feia, desagradável”, Ana Flávia Pires Luca D’Oliveira, Professora de medicina da Universidade de São Paulo.