(O Estado de S. Paulo, 11/07/2015) Apesar de a política pública ser gentil e cuidadosa, aborto legal ainda não é uma garantia para brasileiras
Vá ao dicionário: drone é verbo e substantivo em língua inglesa. Zumbir, falar algo com monotonia. Mas também um pequeno avião, parecido com aqueles de brinquedo mandados para lá e para cá com um controle remoto. Mas um drone é poderoso, e há até quem o considere um veículo do demônio. Drones têm atravessado a fronteira da Alemanha para a Polônia levando medicamentos proibidos, daqueles que salvam vidas, mas carregam o estigma da imoralidade. Pílulas abortivas. Os pilotos dos drones são as mulheres que já navegaram barcos, as ousadas da organização holandesa Women on Waves. O uso de drones por organizações humanitárias transportando medicamentos traça um novo cenário para a conversa sobre o aborto – parece que estamos sobrevivendo a contextos bélicos em que a salvação precisa burlar fronteiras e polícias para que as mulheres não morram.
Não sei navegar barcos nem pilotar drones. Mas chego a pensar se não seria bom aprender, juntar um bando de abusadas, atravessar a fronteira do Brasil com o Uruguai e iniciar o transporte aéreo de medicamentos abortivos. E, antes que me acusem de incentivar ilegalidades, pois o aborto é crime por aqui, os drones seriam usados para o serviço de aborto legal: só em caso de estupro, para salvar a vida da mulher ou quando a gravidez fosse de um feto anencefálico. O Código Penal despenaliza o aborto nesses casos, e a política pública institui os serviços de aborto legal como espaços de cuidado. A mulher ficaria na porta de um desses serviços, preferencialmente no de Porto Alegre, para economizar bateria, e já entraria no serviço pronta para o atendimento médico.
Não sei navegar barcos ou pilotar objetos voadores, mas sei fazer pesquisa. A mais recente delas, financiada pela Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), contou os serviços de aborto legal no país, e depois esmiuçou as exigências de cada serviço para que uma mulher tenha acesso ao aborto. A surpresa foi triste: o dado oficial divulgado por ministérios era de que havia 62 serviços cadastrados como de referência para o aborto legal no país. Fomos mais otimistas, recontamos, começamos com 68. De um em um, fizemos perguntas básicas – atende aborto legal? Quantas mulheres já atendeu? Que documentos são exigidos para o procedimento? Dos 68, ficamos com 37. Isso mesmo, 31 não faziam aborto, nunca existiram como serviço de aborto legal, alguns nos benzeram por tamanha ofensa.
Se o drone não faz perguntas às mulheres quando entrega os medicamentos, os 37 serviços ativos são criativos no interrogatório. A política pública brasileira é gentil e cuidadosa com as mulheres, acredita quando uma mulher diz “fui estuprada”. Por isso, assim como o drone, os serviços deveriam acolher as mulheres quando acionados – se uma mulher se apresenta como vítima de violência sexual e grávida, sendo sua vontade o aborto, o serviço deveria oferecê-lo com discrição e eficiência. A política pública recomenda o limite de 20 semanas de gestação. Palavra da mulher e tempo gestacional são os requisitos para o atendimento.
Tristemente, encontramos muitos serviços confusos quanto ao que fazem com o poder do jaleco branco: seriam eles cuidadores da saúde ou legisladores? Ou pior: policiais investigadores da verdade do estupro? Em desordem, listo a criatividade para impedir o acesso ao aborto legal, e vejam o quanto um drone poderia ser mais eficiente para a política pública brasileira: dos 37 serviços, em 35 não há equipe específica, sendo o atendimento feito por quem estiver no plantão; em 2 só se atende gestação até 14 semanas; em 2 a mulher conversa com o advogado do hospital; em 3 ela se consulta com psiquiatra; em 2 não há anticoncepção de emergência; em 4 não há profilaxia para DST/aids; em 5 a mulher precisa antes ir à polícia e retornar ao serviço com um boletim de ocorrência policial; em 3, precisa ir ao Instituto Médico Legal; em 3, deve ir ao Judiciário e retornar acompanhada de um alvará judicial; em 4 é avaliada por comitê de ética institucional. E, em sete estados, só mesmo um drone para cuidar das mulheres, pois não há serviço de referência ativo.
Se drone é aviãozinho e zumbido, o aborto legal no Brasil precisa de algo parecido, só mais barulhento. Zumbir é pouco, precisamos gritar: nem o aborto legal é garantido no país. Uma resposta possível e confortante é acreditar que as mulheres acessariam o aborto legal fora dos serviços de referência, ou seja, que esse conjunto de barreiras para o acesso não impediria que as mulheres abortassem legalmente no Brasil. Difícil acreditar nessa tese, pois se nas instituições de referência, onde as equipes estariam sensibilizadas a entender o aborto legal como uma necessidade de saúde, encontramos esse quadro trágico, imagine nos sete estados onde sequer há serviços de referência para o aborto legal.
Honestamente, quem se habilita a iniciar o drone do aborto legal no Brasil?
Acesse o PDF: O zumbido de um direito, por Debora Diniz (O Estado de S. Paulo, 11/07/2015)