(Carta Capital) Nos últimos tempos uma onda perigosa ameaça a democracia e a laicidade do Estado brasileiro. Apenas nas últimas quatro semanas assistimos com perplexidade na Câmara Federal a aprovação do projeto de lei que admite a internação compulsória de usuários de drogas e a passagem ampla para instituição da bolsa estupro e demais aberrações constantes no Estatuto do Nascituro, aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação.
No mesmo sentido, a censura à campanha com prostitutas realizada pela coordenação do Programa da AIDS/Hepatites Virais, resultando na demissão de dirigentes daquela área pelo ministro da Saúde.
Estes acontecimentos deixaram um sentimento generalizado de indignação e revolta em todos nós que defendemos e lutamos pela democracia, pelos direitos humanos e pelo estado laico.
Por interesses distintos, a pressão feita junto ao parlamento e ao governo brasileiro provocando estes retrocessos provém do mesmo grupo, os fundamentalistas religiosos, que querem impor valores e moralidades ao conjunto da sociedade nacional.
E o que fica evidente é que não tem havido reação dos Poderes instituídos às imposições colocadas pelos fundamentalistas. As moralidades religiosas estão desmontando o tecido social da democracia e do Estado laico conquistados pelo conjunto da população brasileira.
Desde o início do governo Dilma, a presença dos religiosos no cenário político conquistou compromisso do governo pela descontinuidade do debate sobre aborto e das ações incluídas nas políticas publicas que no governo Lula tinham avançado significativamente.
É preciso lembrar que o então ministro da Saúde, José Gomes Temporão, alertou a sociedade sobre a necessidade de legalizar o aborto como estratégia de saúde publica, pelo fato da clandestinidade levar as mulheres ao adoecimento e à morte. O próprio presidente Lula declarou ser necessário acabar com a hipocrisia acerca do aborto. A ex-ministra Nilcéia Freire, da Secretaria para Mulheres, à época, colocou como prioridade de sua gestão os direitos sexuais e reprodutivos. Hoje, dolorosamente, o que assistimos é uma censura ao debate sobre os temas dos direitos sexuais e reprodutivos agravada pela omissão dos poderes executivo e legislativo sobre questões centrais para a cidadania feminina, incluindo mudanças de abordagens nas suas políticas e programas.
Este retrocesso que compromete a laicidade constitucional tem gerado grande indignação na sociedade, culminando com a recente aprovação do Estatuto do Nascituro. O atraso começa pela referência ao termo nascituro, absolutamente inadequado por referir-se àquele conjunto de células pré embrionárias que têm possibilidade de se transformar em ser humano e pessoa, se houver o desenvolvimento intra-uterino e a ocorrência do nascimento com vida.
Uma pessoa é uma entidade que tem certas capacidades ou atributos associados à personalidade, incluindo autoconsciência, a capacidade de realizar uma ação moral e ajuizar sobre ela.
Longe de ser universal, o conceito de “pessoa” na filosofia está associado a variabilidade histórica e cultural envolvendo controvérsias de acordo a cada linha filosófica. Tomando a capacidade da autonomia como referência para a condição de pessoa, o estatuto em questão cria sérios desvios éticos e jurídicos ao atribuir direitos civis e obrigações do Estado às células humanas pré-embrionárias, anulando o poder de escolha da pessoa-mulher e, por extensão, das demais pessoas de sua família.
O direito das mulheres passa a ser precedido pelo direito do nascituro, ou seja, o direito de células que um dia poderão ser transformadas em um corpo de uma pessoa cassa os direitos das mulheres. Não parece um contrassenso, uma mutilação dos direitos das mulheres?
No meio de outras aberrações igualmente graves, o Estatuto do Nascituro propõe instituir a “bolsa estupro”, uma violência contra mulheres e crianças como solução para a violência sexual que a mulher é vítima.
É como se a mulher se tornasse culpada pela violência sexual sofrida. Desta forma, será punida e obrigada a carregar pelo resto de sua vida as consequências dessa dolorosa situação. E as consequências para esta criança? Não há como desconsiderar.
É possível prever a dimensão e gravidade dos problemas que esse Estatuto produzirá para a saúde e a cidadania das mulheres. Caso seja aprovado, a história política do país, que pela primeira vez é conduzido por uma mulher, irá registrar o retorno das mulheres à tutela sufocante das moralidades misóginas religiosas que não as respeitam e que anula a luta e os direitos que vem sendo conquistados.
*Ana Maria Costa é presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
Acesse o link aqui: E o Estado não é Laico?, por Ana Maria Costa (Carta Capital – 11/06/2013)