O episódio histórico em que os gregos enganam os troianos dando aos mesmos um cavalo de madeira gigante, fazendo com que eles abrissem as portas para os inimigos escondidos, foi retratado em literatura e filmes. Todos conhecem o “Cavalo de Tróia”.
(Justificando, 23/11/2017 – acesse no site de origem)
Assim é chamada a PEC 181, atualmente em discussão na Câmara dos Deputados, pois foi apresentada no meio do processo legislativo e tratando de tema diverso do projeto, proposta de inclusão no seu texto, a vida como inviolável “desde a concepção”. Se aprovada a proposta dessa forma sugerida, abortos permitidos em lei há quase 80 anos serão criminalizados, além de ser proibida fertilização in vitro ou pesquisas com células tronco embrionárias.
A PEC 181/2015, de autoria do Senador Aécio Neves (PSDB/MG), apensada à PEC 58/2011 – com o mesmo teor – tratava inicialmente da ampliação da licença maternidade, estendendo este período para até 240 dias para mães de recém-nascidos prematuros, alterando então, o inciso XVIII do artigo 7º da Constituição.
A proposta já foi analisada e aprovada no Senado, sendo enviada à Câmara, cuja Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) também votou de forma favorável. Após isso, foi enviada a Comissão Especial criada para avaliar essa proposta. Cumpre observar que foram realizadas audiências públicas no âmbito da Comissão Especial, todas com argumentos favoráveis ao projeto que seria apresentado.
Assim, ao texto original foi apresentado um substitutivo pelo Relator, Deputado Jorge Tadeu (DEM/SP), em agosto desse ano, no qual duas novas alterações seriam feitas na Constituição Federal, especificamente nos artigos que tratam da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e direito à vida (art. 5º, caput), com intuito de acrescentar, em ambas, a expressão “desde a concepção”.
Pela justificativa do substitutivo fica clara a intenção de que essa alteração constitucional passe a interferir, e até mesmo impedir, o exercício dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos das Mulheres, com especial destaque ao objetivo de proibir aborto em qualquer hipótese.
O legislador de 1940 inseriu duas hipóteses, no Código Penal, em que o aborto, que é crime no Brasil, poderia ser realizado, quais sejam, em caso de gestação decorrente de estupro e quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. A essas previsões legais se somou, recentemente, em 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal (ADPF 54) antecipação do parto em casos de anencefalia do feto.
O texto da PEC, com o substitutivo, foi aprovado pela Comissão Especial da Câmara com 18 votos contra um na primeira sessão, sendo a segunda suspensa após manifestação do Movimento de Mulheres.
Cumpre relembrar a outros projetos que trazem os mesmos objetivos, como os conhecidos “Estatuto do Nascituro” (PL 478/2007) e PL 5069/13, além de outras PEC com idêntico conteúdo e mesmo objetivo, que são a PEC 164/2012, de autoria de Eduardo Cunha, e PEC 29/2015, de autoria do senador Magno Malta (PR/ES).
Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres
Tais tópicos são constantemente ameaçados, sendo que atual legislatura do Congresso Nacional tem sido bastante enfática em impedir qualquer avanço da pauta da legalização do aborto no Brasil, visando, até mesmo, retroceder a legislação atual e criminalizar o aborto em todos os casos.
O substitutivo da PEC 181 trouxe proposta em alterar duas normas constitucionais até então não tratadas no projeto inicial. De fato, a PEC 181 originalmente propunha aumento de tempo de licença maternidade em casos de nascimentos prematuros. O substitutivo visa garantir direito à vida desde a concepção.
A Lei Complementar 95/1998, que regulamente o artigo 59, parágrafo único[1], da Constituição, descreve em seu artigo 7º que “primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação”, contendo como princípio que no texto da lei não deve ter conteúdo diverso do seu objeto, o que ocorre no caso em comento. Assim, há um vício formal no substitutivo da PEC 181, por afronta ao artigo 7º, da LC n.º 95/98, não devendo ser ele aprovado.
Com relação ao mérito, deve-se compreender que o texto da PEC fere cláusula pétrea, descritas no artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, especificamente que trata dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV).
De fato, o texto constitucional infere como cláusulas pétreas normas que tendem “abolir direitos e garantias individuais”, sendo claramente a consequência no caso de aprovação da PEC 181, com seu substitutivo. Não há qualquer violação no caso do texto original.
Logo, o atual texto da PEC 181 viola o artigo 5º, caput, e inciso X, CF,que compreendem a proteção da realização da própria vida sem intervenções de terceiros e do Estado, e também o artigo 5º, VI da CF, que prevê a natureza laica.
O que diz a Constituição
Em seu artigo 1º, inciso III, que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana.
Um dos desdobramentos nucleares do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana é precisamente a autodeterminação corporal que constitui uma das formas de exercício da autonomia individual da vontade, que – para que se faça plena – deve ser resguardada frente a supostos interesses coletivos.
Nesta perspectiva, considera-se vedada a coisificação do indivíduo, que restaria corrompido, caso a esfera privada individual fosse gerida pelo Estado.
Ressalte-se que, em se tratando de aborto relativo à gravidez decorrente da prática de estupro, aborto de fetos anencefálicos ou que represente risco à vida da mulher, as normas jurídicas vigentes permitem que a gestante decida se deseja ou não fazer o aborto, deixando a seu critério, como titular da própria integridade física e do próprio corpo, a decisão, cujas consequências interferem direta e fisicamente em sua vida privada.
Se, mesmo diante do crime de estupro contra si praticado, a mulher deliberar dar à luz, ela o estará fazendo conscientemente, amparada pela lei e, evidentemente, assistida pelo Estado. Mas tem em suas mãos o poder de decidir.
Assim, no Estado Democrático de Direito, há que se assegurar a máxima efetividade dos direitos fundamentais, mas não só. Nos termos do artigo 5º, § 2º, da mesma Constituição Federal, os Direitos Humanos expressos em instrumentos internacionais que o Brasil seja parte também integram o leque de direitos e garantias individuais proibidos de extinção por emendas constitucionais.
Com efeito, de acordo com a OMS, saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não se restringindo, portanto, a ausência de enfermidades. A saúde sexual e a saúde reprodutiva estão claramente inseridas nesse conceito amplo.
A saúde reprodutiva foi o primeiro desses dois aspectos a ser elevado à categoria de direito individual. Desde a revolução sexual, nas décadas de 1950 e 1960 – com a descoberta da pílula anticoncepcional – o direito à liberdade e autonomia da mulher é pauta dos movimentos feministas.
No entanto, apenas no ano de 1994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, houve avanço no compromisso dos Estados em garantir tais direitos.
Vejamos o previsto artigo 7.2, do Capítulo VII, da Plataforma de Cairo[2]:
A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não de mera ausência de doença ou enfermidade, em todos os aspectos relacionados ao sistema reprodutivo, suas funções e processos. A saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tendo a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo.
Está implícito nesta última condição o direito de homens e mulheres de serem informados e de terem acesso aos métodos eficientes, seguros, aceitáveis e financeiramente compatíveis de planejamento familiar, assim como a outros métodos de regulação da fecundidade a sua escolha e que não contrariem a lei, bem como o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que propiciem às mulheres as condições de passar com segurança pela gestação e parto, proporcionando aos casais uma chance melhor de ter um filho sadio.
Em conformidade com a definição acima de saúde reprodutiva, a assistência à saúde reprodutiva é definida como a constelação de método, técnicas e serviços que contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivo, prevenindo e resolvendo os problemas de saúde reprodutiva.
Isto inclui igualmente a saúde sexual, cuja finalidade é a melhoria da qualidade de vida e das relações pessoais e não o mero aconselhamento e assistência relativos à reprodução e às doenças sexualmente transmissíveis.
A saúde sexual, até então era considerada um aspecto da saúde reprodutiva. Apenas na década de 1990, com o fortalecimento dos movimentos de direitos LGBT, passou-se a compreender que esse é um direito fundamental autônomo em relação ao direito reprodutivo.
De toda sorte, hoje é clara a noção de que ambos são Direitos Humanos, integrando todas as dimensões desses direitos, que podem ser exercidos de forma autônoma apesar de estarem intimamente conectados.
Pois bem, após Cairo, diversos organismos de garantia de Direitos Humanos das Mulheres fizeram relatórios e recomendações sobre esses direitos, especificamente, em alguns deles, sobre aborto, sempre tratando numa perspectiva de garantia de direito das mulheres.
No que se refere ao direito à vida, por outro lado, a Constituição da República, no caput do art. 5º, consagra o direito à vida, sem estabelecer, entretanto, que essa proteção se daria desde a concepção. Aliás, esse é justamente objeto da proposta de alteração.
Na justificativa do susbtitutivo a Convenção Americana de Direitos Humanos é citada, mais especificamente o artigo 4.1, que estabelece que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”.
Num primeiro momento, poderiam afirmar que não haveria alteração no ordenamento jurídico brasileiro, já que o Brasil ratificou a convenção, integrando-a às normas brasileiras. Contudo, a interpretação desse artigo pela Corte Interamericana de Direitos Humanos deixa claro que ele não serve para justificar retirada de direitos dos indivíduos.
Em recente caso[3], a Corte Interamericana de Direitos Humanos, interpretou o artigo 4.1 da Convenção Americana através de um patamar hermenêutico diverso. Até então, o direito à vida era valorado tão somente como obrigação estatal, negativa ou positiva (proibição de privar alguém de sua vida arbitrariamente e obrigação de se proteger e preservar esse direito).
De modo diverso, no caso analisado, a Corte objetivou interpretar a extensão do direito à vida desde a concepção, definindo – inicialmente – que não há concepção de forma independente do corpo da mulher.
Ainda, em interessante análise interpretativa sistemática e histórica, a Corte recriou as discussões em torno desse dispositivo quando de sua criação, além de como ele deve ser observado a partir do artigo 1º da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem[4], chegando à conclusão de que não era intenção elevar o embrião ao status de pessoa.
Na verdade, a concepção é juridicamente protegida porque se pretende proteger a mulher grávida, já que aquela ocorre dentro do corpo desta, ou seja, a proteção do nascituro se realiza através da proteção da mulher[5].
Direito à vida e a jurisdição da Corte IDH
Percebe-se, portanto, que o direito à vida desde a concepção não é absoluto quando em conflito com outros direitos previstos no mesmo documento e já garantidos em precedentes emanados por órgãos constitucionais de diversos países.
Assim, o art. 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos garante o direito à vida desde a concepção, sem, entretanto, que isso possa eliminar ou reduzir os direitos fundamentais da mulher gestante, sendo que, em caso de conflitos de direitos fundamentais, o direito da mulher, essa sim com status de pessoa, deve prevalecer.
O Brasil se submeteu à jurisdição da Corte IDH, devendo, assim, aplicar as normas previstas nos instrumentos de garantia de direitos, mas também sua jurisprudência, sob pena de violar a norma por não garantir sua efetividade.
Assim, por mais que a PEC 181 introduza o preceito de inviolabilidade da vida desde a concepção, dever-se-ia entender com base no decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, qual seja, a concepção do nascituro não elimina ou reduz os direitos fundamentais da mulher gestante.
E essa interpretação não protege apenas as mulheres que não desejam manter suas gestações, mas aquelas que desejam ser mães e dependem, para isso, da tecnologia, como fertilização in vitro.
Se prevalecer a ideia de que a vida é absoluta desde a concepção, entendida essa como fecundação, a fertilização in vitro passará também a ser proibida. Num procedimento como este, dezenas de óvulos são fecundados, porém apenas alguns serão introduzidos na mulher de modo que os outros são descartados.
O Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre isso no julgamento da ADI 3510, que tratava da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), que tratava da possibilidade de pesquisas com células tronco embrionárias, ficando permitida essa prática, afastando, portanto, a compreensão de direito à vida desde a concepção.
Segundo dados de 2016 do Ministério da Saúde, diariamente, 4 mulheres morrem em hospitais do país por conta de complicações do aborto inseguro, com mais de 124 mil internações por consequências da interrupção da gravidez, devendo esse problema ser enfrentado em diferente perspectiva, diversa da marginalizante.
Ana Rita Souza Prata e Paula Sant’Anna Machado de Souza são Defensoras Públicas Coordenadoras do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.