“O estupro viola o ser íntimo e privado além do ser externo e social. Não é exclusivamente sexo nem exclusivamente violência; é a expressão humilhante de um diferencial de poder que une com agressividade esses dois motivos e comportamentos.” (SOLOMON, 2015, p. 558)[1]
(Justificando, 26/11/2017 – acesse no site de origem)
Que fique bastante claro, e desde logo: não defendo o aborto como método contraceptivo. Muito pelo contrário. Tampouco defendo a obrigatoriedade de uma mulher estuprada abortar. O que se pretende discutir neste texto é a liberdade de decisão — que na hipótese se conecta com o conceito da dignidade da pessoa humana, eixo central do próprio conceito de direitos humanos — da mulher vítima de um estupro e a sua consciência acerca dessa liberdade, em abortar ou não.
Em abril de 2009, publiquei em um artigo intitulado “Aborto decorrente de estupro: uma questão de humanidade”.
Como já ponderava àquela oportunidade, a discussão a respeito do aborto é das mais tormentosas, já que envolve, para além de conceitos jurídicos, noções de fé, religião e, acima de tudo, a discussão sobre o direito à vida, quando ela se inicia e se pode ser em algum momento — e até quando? — interrompida.
E de tempos em tempos o tema volta à pauta.
Assim é que, recentemente, a Comissão Especial da Câmara analisou duas propostas de emenda à Constituição Federal que tratam da licença maternidade — PEC 181/15, do senador Aécio Neves (PSDB-MG), e PEC 58/11, do deputado Dr. Jorge Silva (PHS-ES).
Em um primeiro olhar, tais propostas de emenda constitucional mostravam-se positivas, destinando-se assegurar um maior tempo de licença-maternidade para as mães que tenham filhos prematuros[2].
Todavia, ao examinar essas propostas de emenda à Constituição, o relator do colegiado — deputado Jorge Taudeu Mudalen (DEM-SP) — optou por sugerir nova redação, que, se aprovada pela Câmara, poderá impedir a realização de qualquer tipo de aborto no país, inclusive aqueles legalmente previstos no Código Penal de 1940, que permite o aborto em caso de risco de vida para a mãe e em caso de estupro (artigo 128, incisos I e II, do Código Penal). De se lembrar, ainda, que em abril de 2012 o Supremo Tribunal Federal decidiu que não é crime a interrupção da gravidez quando o feto apresentar má formação do cérebro (anencefalia).
Segundo informes obtidos no site da Câmara dos Deputados[3], no novo texto proposto:
(…) Mudalen estabelece que o princípio da dignidade da pessoa humana e a garantia de inviolabilidade do direito à vida, ambos já previstos na Constituição, deverão ser respeitados desde a concepção — ou seja, do momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozoide —, e não apenas após o nascimento. ‘Isso significa que nós somos favoráveis à vida’, disse. Segundo ele, o Código Penal não é alterado pela proposta.
Mas, ao contrário do que sustenta o parlamentar, se aprovada tal proposta de emenda constitucional, ela poderá vir a afetar a disposição do artigo 128, incisos I e II, do Código Penal, que prevê as hipóteses de aborto legal, tornando-as vedadas. Com efeito, ao se conferir estatura constitucional ao conceito de que o direito à vida se inicia no “momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozoide”, não é difícil supor que poderão surgir entendimentos no sentido da ilicitude das hipóteses de aborto consideradas lícitas pelo legislador de 1940, o que virá a configurar inequívoco retrocesso no enfrentamento de tão delicada questão.
Afinal, o arcabouço legal hoje existente busca, justamente, proteger a mulher vítima de violência, com ênfase, nesse aspecto, para a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha).
Merece destaque, outrossim, a Lei 12.845/13, legislação esta que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Assim, visa facilitar o acesso da mulher vítima do crime de estupro ao sistema de saúde existente, de forma que o trauma e a agressão sofridos possam encontrar algum tipo de conforto no atendimento rápido e multidisciplinar.
Considere-se, também, a Portaria Interministerial 288/15, que estabelece orientações para a organização e integração do atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e pelos profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), quanto à humanização do atendimento e ao registro de informações e coleta de vestígios.
Ainda a respeito do tema, vale mencionar as portarias 1508/05 e 484/14 do Ministério da Saúde. A primeira dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do SUS; e a segunda redefine o funcionamento do Serviço de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual, também no âmbito do SUS.
Não se pode olvidar, por fim, do Decreto 7.037, de 21 de dezembro de 2009, que aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos-PNDH3, considerando o aborto um tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde[4], estabelecendo a necessidade de implementação de mecanismos de monitoramento dos serviços de atendimento ao aborto legalmente autorizado, garantindo[5] seu cumprimento e facilidade de acesso.
Todavia, e a despeito dos muitos avanços, tudo indica que parte de nossa sociedade e da classe política ainda não conseguiu introjetar as necessárias mudanças culturais.
E vejam que nosso Código Penal é de 1940, ou seja, já naqueles tempos conservadores o legislador houve por bem permitir o aborto decorrente de estupro, seguramente porque sensível à dor e ao desespero da mulher que, vítima de tão brutal violência, vê-se, ainda, na terrível contingência de carregar ao longo de nove meses o fruto de um ato cuja lembrança e memória podem gerar profunda dor.
Afinal, contra o direito do nascituro — que os defensores da mudança legislativa afirmam querer proteger — colide outro de igual dimensão, o direito à intimidade, que, segundo René Ariel Dotti (apud José Afonso Silva, 2015, p. 209), é “a esfera secreta da vida do indivíduo, na qual este tem o poder legal de evitar os demais”. Logo, a permissão de se fazer aborto em caso de estupro objetiva dar tratamento respeitoso e digno à mulher, evitando que ela (muitas vezes casada, já com outros filhos, com emprego e vida social) sofra com novos e reiterados constrangimentos perante a sociedade, os quais ferem a sua intimidade constitucionalmente protegida.
Além disso, nessa mesma esteira de raciocínio, os defensores das propostas da alteração legislativa esquecem que a mulher que venha a engravidar após um estupro continuará a ser impiedosamente punida em sua condição de vítima, tendo que renovar cotidianamente sua dor, explicando a amigos e conhecidos que sua gravidez prescinde de comemorações e cumprimentos, vergonha e horror que alcançarão maiores proporções diante dos próprios filhos. Como lhes explicar que aquela criança que traz em sua barriga — irmã/irmão dos demais filhos — não é desejada? Pior ainda, como explicar aos filhos as razões desse comportamento materno, sem gerar neles próprios dor, sofrimento e eventualmente sentimentos contraditórios de rejeição e incompreensão? E o relacionamento com o marido ou com o namorado ao longo desses meses? Será que não restaria abalado? E como lidar com o seu próprio corpo transformando-se dia a dia, sem que isso lhe traga qualquer sensação de felicidade? Evidente, assim, a afronta ao direito à intimidade.
Essas indagações, feitas no artigo de 2009 e hoje repetidas, continuam plenamente válidas.
Ora, obrigar a mulher vítima de um estupro a abrir mão de sua vida pessoal, afetiva, social e profissional, gerando-lhe possíveis danos físicos, emocionais e psíquicos, soa desumano, sob qualquer ótica e perspectiva, equivalendo retirar-lhe qualquer direito a valores como respeito e dignidade, sob o argumento de que o feto que traz em seu ventre — expectativa de vida futura — é mais importante e valioso que a vida já concretizada e plena de reconhecimento, afeto e inserção social consolidada da própria gestante.
Implica desconhecer, por fim, a angústia e o tormento que sempre acompanham a tomada dessa terrível decisão — a de abortar —, razão pela qual o mínimo que se pode destinar a mulheres nessa trágica situação é a possibilidade de ver sua dor amparada pelo Estado.
Que cada uma tenha a liberdade de resolver seu dilema ético da forma que melhor lhe aprouver. Afinal, a questão ética é de cunho individual, e assim deve ser resolvida. Mesmo porque a maternidade não é um dever, mas, sim, um querer responsável.
Já o conflito social relativo à prática de aborto decorrente de estupro deve ser examinado sob a ótica da legislação vigente em nosso país, do fato de nosso Estado ser laico, e dos conceitos constitucionais que impedem a tortura e reforçam sobremaneira, como não poderia deixar de ser, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, obrigar alguém a seguir com uma gravidez indesejada, porque decorrente de um ato criminoso, repugnante e bárbaro como o estupro, é desumano.
Que a mulher vítima do estupro, que já não teve condições de optar pela gravidez, possa, ao menos, optar por levar ou não adiante essa gestação, mediante menor grau de sofrimento, resultado do apoio estatal consubstanciado na lei que lhe retira o estigma de criminosa.
Tereza Cristina Maldonado Katurchi Exner é procuradora de Justiça Criminal e vice-corregedora do MP-SP.