Pró-vida de quem?, por Nana Soares

25 de janeiro, 2018

“O problema não é ser pró-vida, é agir de má-fé e construir uma armadilha para mulheres que estão buscando ajuda”, diz autora de reportagem.

(Emais, 25/01/2018 – acesse no site de origem)

Na segunda-feira a Agência Pública trouxe uma reportagem essencial para entender a tragédia a que estão submetidas as mulheres do Brasil. Em “Armadilha para mulheres”, Andrea Dip destrincha como o Centro de Ajuda à Mulher (CAM), com várias sedes no país, usa métodos violentos para convencer as mulheres a não abortar.  A reportagem, a entrevista e a checagem de fatos sobre o Cytotec estão disponíveis no site da Agência e valem ser lidos na íntegra.

Foi a partir do site http://gravidezindesejada.com.br/ que a equipe começou sua investigação, em novembro de 2017, descobrindo que ele está hospedado sob o nome de um religioso ligado à Opus Dei. Após alguns contatos, Andrea e mais uma repórter da Pública combinaram uma visita à sede da entidade para um suposto “atendimento”, quando fica mais claro que o verdadeiro objetivo dos funcionários é convencer as mulheres a seguir com a gestação. Elas usaram seus nomes verdadeiros para visitar o local, recheado de imagens de santos e líderes religiosos.

Em uma segunda visita, a outra repórter (cujo nome está sendo preservado por questões de segurança) foi submetida a uma sessão de verdadeira tortura psicológica travestida de aconselhamento, sendo obrigada a segurar fetos de borracha para sentir o peso do feto que carrega, entre outras atrocidades. O relato é assustador:

Ele pega o molde de um útero e simula como é feito o aborto. Com a ponta da caneta, ele demonstra como a cureta, instrumento cirúrgico, é introduzida no útero e como ela “cutuca” o embrião até despedaçá-lo. O psicólogo tira um boneco da gaveta com o tamanho aproximado de um feto e pede que eu segure. Esse foi o momento mais marcante de toda a conversa. Pude sentir de perto o constrangimento e a vergonha que outras mulheres passam quando se veem nessa situação. Não satisfeito, ele diz: “Esse bebê vai sangrar, vai sair o sangue, aí ele vai tentar fazer o seguinte: tirar os pedaços. Para ter certeza, ele vai colocar um sugador e vai aspirar os pedaços desse bebê”. Por fim pede que eu procure um padre para me tranquilizar.

Para reforçar a mensagem, menciona exemplos de mulheres que foram até eles com a ideia de abortar e, depois de passar por essa sessão, chamada “gravidez em crise”, decidiram ter o filho. Conta o caso de uma mulher casada com um filho que foi estuprada na rua por dois homens. Ela engravidou do estupro e contou para o marido, que não acreditou e começou agredi-la. A mulher se viu sem saída e foi até o CAM procurar ajuda. Depois de passar pela sessão, se convenceu a continuar com a gravidez – mesmo o aborto em caso de estupro sendo legalizado no Brasil.

A repórter, informada sobre a questão e que nem estava realmente grávida, saiu em completo estado de choque. Imaginem as outras incontáveis mulheres que chegam em estado de vulnerabilidade e precisando, mais do que nunca, de atendimento de qualidade e que preserve sua autonomia.

Os religiosos que comandam o CAM dizem que atendem de 3 a 4 mulheres por dia e que a maioria delas é convencida a seguir com a gestação. Entre a primeira consulta e o “atendimento” pelo psicólogo, passou-se uma semana, com datas desmarcadas de última hora. Como me contou Andrea Dip, esse pode ter sido uma estratégia de má-fé, já que para interromper uma gestação cada dia é precioso.

“Não tinha pensado nessa possibilidade, mas recebi um relato de uma menina que passou por algo parecido fora do país e que narrava exatamente esse fenômeno: adiar o atendimento como tática para a mulher desistir de interromper a gravidez.” Baseada no que viu e ouviu, a jornalista pretende denunciar a atuação do profissional ao Conselho Federal de Psicologia.


Para quem acompanha direitos das mulheres, a competente investigação da Pública não deixa de ser chocante, mas também não é uma surpresa, já que sempre soubemos que o direito à interrupção da gravidez causa reações fervorosas de seus opositores e transforma a questão em um verdadeiro campo de batalha. Essa é também a percepção de Andrea Dip, que completa “O problema não é ser pró-vida, ser contra o aborto e militar nesse assunto. Isso é um direito de qualquer pessoa. O problema é agir de má-fé e construir uma armadilha para mulheres que estão buscando ajuda.”

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