(O Tempo, 14/06/2016) Sempre que os serviços de saúde são atacados em nome da restrição de aportes financeiros, esquecem que nós, as mulheres, somos pouco mais da metade do povo brasileiro.
Governos de espectro conservador focam apenas o que santifica a mulher nos discursos: gerar a vida. O que acontece no percurso, abortos espontâneos ou voluntários, não conta, embora saibam que aqui as maiores vítimas são as mais despossuídas, no caso as pobres, mas entre as pobres, as jovens e as negras.
Há uma indústria do aborto às custas da ilegalidade. Há um caráter de classe do aborto no Brasil. O abortamento é um procedimento seguro em mãos habilitadas, que nos países onde é criminalizado só é acessível a quem pode pagar por ele. Logo, uma sociedade que nega a suas cidadãs o acesso ao aborto seguro é cruel.
Em 2005, publiquei pela Mazza Edições o romance “A Hora do Ângelus”, que aborda “amores, abortos e abandonos nos subterrâneos da Igreja”, do qual transcreverei alguns fragmentos.
“Ele riu e perguntou se eu abortara alguma vez.
“‘Não, nenhuma. Também nunca precisei. E, depois, uma mulher só opta por abortar diante de necessidades especiais, como, por exemplo, quando não tem como criar o filho; como não suportar o peso da vergonha de uma gravidez sozinha diante de familiares e do seu meio social; ou quando uma gravidez é indesejada por muitos outros motivos. Tem sido assim em todas as sociedades. Hoje, há outras questões postas, como, por exemplo, inviabilidade fetal comprovada, e o ônus de deixar vir ao mundo uma criança com doenças graves e incapacitantes para a vida autônoma para as quais a sociedade e o Estado lavam as mãos’.
“‘Mas como é para um homem exigir que uma mulher aborte?’ – indaguei.
“‘O aborto para mim é um tema de autodeterminação das mulheres. Quando tive de lidar com o aborto do ponto de vista pessoal, era numa época em que provocar um aborto era quase sinônimo de morte, nem sequer havia antibióticos. Foi em 1940. Não havia ainda a penicilina. As mulheres dependiam da habilidade da parteira, muito mais do que de conhecimentos médicos (…). Ela em minha vida e o meu amor por ela são comparáveis a um acidente, já que meu plano era outro. Naquela época eu entendia que acidentes são acidentes, nada mais que acidentes, portanto devem ser tratados como tal’.
“(…) Não há o pecado do aborto. Aí é que está a diferença. Nem sempre foi como hoje, na história da Igreja, a opinião sobre o aborto. Há muita literatura sobre isso. Essa opção da Igreja de lutar contra o aborto é inútil, na medida em que ela luta mesmo é para que as mulheres não tenham acesso ao aborto seguro. O problema para a Igreja não são os abortos, mas os leitos obstétricos para o aborto, pois a simples existência deles, em qualquer lugar, desmoraliza a sua posição contrária…
“(…) Essa batalha contra o aborto ela já perdeu, mas só se dará conta disso quando perder a dos leitos obstétricos para o aborto também. É preciso e é tão importante quanto a luta pelas leis sobre direito ao aborto preparar caminhos para a definição de leitos obstétricos para o aborto, ainda que indiretamente.
“Você me entende? O aborto, nos tempos atuais, assim como a gravidez, e especialmente uma gravidez indesejada, não pode mais ter esse poder de antigamente de mudar projetos e cursos de vida contra a vontade das pessoas. O poder até de destruir a vida de mulheres e de homens. Aceitar que assim seja é se portar contra o projeto civilizatório dos tempos atuais”.
Eis por que a resistência no combate às trevas hoje no Brasil deve ser feita nos Estados.
Acesse no site de origem: Proteção à saúde e à vida das mulheres como direito, por Fátima Oliveira (O Tempo, 14/06/2016)