(O Estado de S. Paulo, 19/05/2016) Há décadas, uma das pautas centrais do movimento feminista no Brasil e no mundo é a legalização do aborto. Um assunto que embora consensual dentro do movimento é extremamente polêmico e contestado fora dele. É um tema que desperta paixões e divide opiniões, mas são pouquíssimas as críticas que não usam argumentos hipócritas ou de má-fé para basear sua lógica.
Digo isso porque a resposta mais comum para o questionamento “Você é contra ou a favor do aborto?” é o contra. Ganha de lavada. “Quem pode ser a favor de tirar uma vida?” é uma resposta quase instintiva. Por isso, os movimentos anti-legalização denominam-se “pró-vida”, um argumento que logo se mostra falso ao olhar a questão mais de perto.
As pesquisas continuam mostrando que a maioria da população brasileira não só é contra o aborto como defende punição severa para as mulheres que o realizam. Mas vejam só, quando as pessoas conhecem alguém que teve que passar pela situação, a opinião começa a mudar. A punição não deve ser tão severa assim ou sequer deve existir. O motivo é simples: ao conhecer uma mulher em uma gravidez indesejada, mesmo os opositores conseguem enxergar as múltiplas nuances da situação e entender que não se trata de uma questão de sim ou não.
Só que essas nuances são sumariamente silenciadas no debate público de maneira intencional, para que não reste nada além de uma batalha entre o sagrado e o profano, entre os defensores da vida e os que pouco se importam com ela.
Vamos aos fatos: no Brasil, onde o aborto é crime, uma em cada cinco mulheres de até 40 anos já terminou voluntariamente uma gestação. Elas são, em sua maioria, religiosas e casadas. Por ser ilegal, os dados são imprecisos, mas as estimativas dão conta de até um milhão de abortos voluntários realizados no país a cada ano. Mais alguns dados: no mundo inteiro, 73% das mulheres que abortam são casadas e uma em cada quatro gestações termina em aborto provocado.
Por que é importante saber disso? Oras, fosse o aborto uma questão tão vida versus morte, teríamos um problema sério no mundo, já que 25% das mulheres que engravidam “optam” pela interrupção da gravidez. No Brasil, seriam entre 600 mil e 1 milhão de novas mulheres colocadas na cadeia a cada ano (a atual população carcerária do país é de cerca de 620 mil pessoas). Somos um país de assassinas ou devemos aceitar que a questão é mais complexa do que parece à primeira vista?
Quando escrevia um livro sobre violência contra a mulher, entrevistei uma jovem que preferiu cometer uma série de crimes para ter acesso a um aborto seguro (como dizer que foi estuprada e fazer um BO falso*) do que levar a gravidez adiante, dada sua falta de estrutura emocional e financeira naquele momento. É um caso que simboliza muito bem o que a proibição acarreta: o risco à saúde da mulher. Alguém que quer abortar não será impedida pela proibição. Pelo contrário, a barreira legal faz com que as mulheres fiquem ainda mais desesperadas e recorram a métodos pouco ou nada seguros, como abortos caseiros ou em clínicas sem qualquer garantia. O resultado? Abortos inseguros são uma das principais causas de mortalidade materna no país, especialmente entre as mulheres negras.
E é isso que a legalização quer combater. Abortos acontecem, está na hora de aceitar. E quem os comete não são mulheres desalmadas. Sou eu, é você, é sua mãe, é sua tia, é sua prima. Legalizar o aborto garante que as mulheres parem de morrer e regula, por exemplo, até que ponto de gestação ele pode acontecer. Falar em legalizar o aborto é falar em assegurar direitos às mulheres, algo que nunca foi bem visto em nossa sociedade. Por isso tanta resistência.
É um direito dos grupos religiosos ser contra o aborto, assim como qualquer pessoa pode, individualmente, ter suas convicções. O que não é direito é transformar tais convicções pessoais (especialmente se partem dos preceitos da religião) em políticas de Estado. Estado esse que é laico e não deve se pautar no que pensam as religiões a respeito de uma determinada prática**. Tivéssemos aqui um debate sério, a pergunta nem seria sobre ser contra ou a favor do aborto, porque essa é uma escolha de caráter pessoal. A pergunta correta é: “Você é contra ou a favor da legalização do aborto?”.
Falamos aqui de um país em que falta informação de qualidade sobre métodos contraceptivos e onde sobra moralismo para impedir a educação sexual nas escolas. Falamos de uma situação em que as mulheres preferem enfiar uma agulha de tricô no próprio útero do que seguir com a gestação. Não se enganem: dizer-se pró-vida nesse contexto quer dizer pró-feto ou, na verdade, anti-vida das mulheres.
*Importante notar que mentir sobre estupro para conseguir um aborto não é uma prática generalizada
** O que vem endo ignorado no país há muito tempo e promete piorar, já que o novo Ministro da Saúde declarou a intenção de incluir as igrejas no debate do aborto
Acesse o PDF: Quando o assunto é aborto, a hipocrisia rola solta, Nana Soares (O Estado de S. Paulo, 19/05/2016)