“Falar em castidade hoje mais do que nunca é algo urgente”, afirmou padre convidado por parlamentares católicos e evangélicos.
(HuffPost Brasil, 08/06/2018 – acesse no site de origem)
“Alguém que não reconhece na concepção o início da vida é alguém que não se reconhece como pessoa.”
A frase é de Dom Ricardo Hoepers, representante da Comissão Vida e Família da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dita em um seminário realizado na semana passada na Câmara dos Deputados. O objetivo do evento era discutir uma ação impetrada pelo PSol no STF (Supremo Tribunal Federal)que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez, período considerado seguro para a mulher.
Além do bispo, a lista de especialistas presentes incluía um padre e juristas que se classificam como “pró-vida”. A posição era a mesma entre os parlamentares presentes: deputados Hugo Leal (PSD-RJ), Victorio Galli (PSL-MT), Juscelino Filho (DEM-MA), presidente da Comisão de Seguridade Social e Família, além de Takayama (PSC-PR), presidente da Frente Parlamentar Evangélica, Givaldo Carimbão (Avante-AL), presidente da Frente Parlamentar Católica e Diego Garcia (Podemos-PR), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida. O senador Magno Malta (PR-ES) também participou.
Todas as falas no evento em 30 de maio foram contrárias ao pedido feito na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, em tramitação no STF, sob relatoria da ministra Rosa Weber. Representantes do gabinete da magistrada estavam na lista de convidados para o debate na Câmara, mas não compareceram.
A magistrada determinou a realização de uma audiência pública no STF sobre o tema. O debate será nos dias 3 e 6 de agosto, com 40 entidades escolhidas por Weber. “O propósito da audiência pública é incrementar, de forma dialógica e aberta aos atores externos da sociedade, o processo de coleta de informações técnicas, e das variadas abordagens que o problema constitucional pode implicar, bem como a formação ampla do contexto argumentativo do processo, como método efetivo de discussão e de construção da resposta jurisdicional”, escreveu a ministra em despacho do dia 4 de junho.
Foram recebidos 502 e-mails entre 2 e 25 de abril, sendo 187 pedidos de habilitação como expositor na audiência, de pessoas físicas com potencial de autoridade e representatividade, de organizações não-governamentais, sociedades civis, sem finalidade lucrativa, e institutos específicos.
Na lista de selecionados estão o Ministério da Saúde, organizações da aaúde, como Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, religiosas, como a Conferência Nacional dos Bispos, de direitos humanos, como a Human Rights Watch, entidades que ajudam mulheres a interromper a gravidez, como a Women on waves, além de integrantes da Frente Parlamentar em Defesa da Vida.
Na ação discutida no STF, o Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero é autor, junto com o PSol. No processo, advogadas afirmam que a proibição é ineficaz e que o Estado brasileiro, em última instância, acaba sendo conivente com práticas semelhantes à tortura às quais as mulheres se submetem para interromper a gestação.
Hoje o aborto só é permitido no Brasil em caso de estupro, risco de vida da mulher ou feto anencéfalo. Autor da ação junto com o PSol, o instituto Anis argumenta que a proibição é ineficaz e que o Estado brasileiro, em última instância, acaba sendo conivente com práticas semelhantes à tortura às quais as mulheres se submetem para interromper a gestação.
Para eles, existe falta de “voz” do feto
Em seu discurso, Dom Ricardo Hoepers, criticou a falta de voz do feto no debate que, de acordo com ele, privilegia os direitos reprodutivos. “Em nenhum momento se fala do feto, da criança, do nascituro. Todos os argumentos estão direcionados à mulher. Do ponto de vista da proporcionalidade, temos um grande problema. Duas pessoas são tratadas de modo tão diferente. Uma tem todos os direitos e a outra não tem nenhum direito”, afirmou.
Não há uma definição no sistema jurídico brasileiro sobre quando começa a vida e, portanto, quando se pode falar de direitos da pessoa. A bancada religiosa pressiona para que essa definição seja “desde a concepção”. A mudança é conteúdo da Proposta de Emenda (PEC) 181/2015, cujo texto-base foi aprovada em uma comissão especial da Câmara em novembro de 2017. Se for aprovada, ela pode inviabilizar o aborto nos casos de estupro e risco de vida para a mulher, previstos no Código Penal.
O mesmo ponto de vista é proposto pelo Estatuto do Nascituro, em tramitação no Congresso e defendido pelo bispo no evento. O religioso destacou ainda a posição da CNBB em 2017 sobre a descriminalização do aborto. “O direito à vida é incondicional (…) Desde quando o espermatozóide encontra o óvulo, inaugura-se uma vida. Não é a religião que fala isso. É a ciência. Há uma explosão de vida no encontro desses dois gametas”, afirmou.
A defesa das “casas contra o aborto”
Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida, o deputado Diego Garciadefendeu a inclusão de instituições que trabalham no atendimento de mulheres a fim de evitar abortos em políticas públicas de saúde no Brasil.
“Imagina o que é possível ser feito se essa medida for adotada como uma política pública pelo nosso País? Se for adotada pelo Ministério da Saúde? Se essa intervenção for feita pelo Estado, dando o suporte e o apoio às mulheres pobres, miseráveis, que talvez não tenham condições financeiras de criar, de dar à luz seu filho?”, questionou no seminário sobre descriminalização do aborto.
Na mesa de abertura do evento, Garcia contou sobre a atuação da Casa Pró-Vida em Curitiba (PR). De acordo com ele, a instituição atende principalmente grávidas com dificuldades financeiras. “Ao receberem apoio dessa entidade, elas desistiram de abortar. Está ajudando a salvar vidas”, afirmou.
Na avaliação do parlamentar, se esse tipo de entidade tivesse apoio do Estado, não haveria casos de interrupção da gravidez. “Se esse suporte foi dado a elas desde os primeiros meses da concepção, eu não tenho dúvida de que todas desistirão de abortar”, completou.
De acordo com Garcia, foi feita uma sugestão ao Ministério da Saúde na gestão do ex-ministro, Ricardo Barros, deputado federal pelo PP do Paraná, mas ainda não houve resposta. “Fizemos uma sugestão ao Ministério da Saúde porque isso tem de partir do Poder Executivo por conta de vício de iniciativa”, afirmou o presidente da Frente em Defesa da Vida ao HuffPost Brasil. A pasta informou à reportagem que não encontrou qualquer consulta sobre o tema.
Garcia criticou a atuação do PSol, partido responsável por apresentar o questionamento à Justiça. O deputado lembrou que o também deputado Jean Wyllys (Psol-RJ) é autor de um projeto de lei que pede a descriminalização da interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação. “Sabendo que tal matéria não tem qualquer chance de prosperar e ser aprovada, tenta fazer uso do ativismo judicial e tirar o que é prerrogativa deste Parlamento”, criticou.
“Nossa luta não é contra partidos, contra parlamentares. A nossa luta é contra essa cultura de descarte, essa cultura da morte, que tenta ser promovida de forma sorrateira e desleal, tentando a promoção de uma matança generalizada de inocentes. Temos atuado na Câmara desde que chegamos.”
O parlamentar disse que a Câmara não é omissa no debate e que propostas a favor dos direitos reprodutivos não prosperam na Casa. “Esse debate não deixou de acontecer em outras legislaturas e nessa aconteceu por inúmeras vezes, tanto proposta por nós quanto pelos que advogam pela descriminação do aborto aqui no Congresso Nacional. Toda vez que tentaram, essas matérias foram rejeitadas e algumas foram arquivadas”, afirmou.
Em seu discurso, o deputado lembrou da PEC Cavalo de Tróia. Em novembro de 2017, uma comissão da Câmara aprovou o texto-base da Proposta de Emenda à Constituição 181 de 2015, que pode inviabilizar o aborto até nos casos de estupro. Falta votar destaques do parecer no colegiado para que o texto possa ser votado em plenário.
A distribuição dos “bonecos de fetos”
Ao longo do debate, o auditório Nereu Ramos, na Câmara dos Deputados, foi tomado por cartazes com imagens de procedimentos de aborto. Na platéia, freiras e outros religiosos aplaudiam os discursos. Bonecos de fetos com 10 semanas foram entregues à reportagem do HuffPost, que acompanhava o evento, assim como a outros ouvintes.
Alguns dos aplausos foram para o discurso de José Paulo Leão Veloso Silva, procurador de Sergipe. O jurista também criticou o foco nos direitos reprodutivos.
“Não se está discutindo a possibilidade de que a mulher ampute sua perna, ou seu braço. Está se discutindo a possibilidade de que a mulher venha a matar ou autorizar que alguém mate um ser humano.”
Veloso criticou o que chamou de propaganda pró-aborto e a atuação de parlamentares a favor da descriminalização. “Será que eles acompanhariam a prática abortiva e depois pegariam os restos mortais da criança, colocariam uma mão na cabeça, outro seguraria o braço, outro as pernas e sorririam e tirariam fotos?”, questionou.
Na avaliação do jurista, a ADPF é uma estratégia de parlamentares derrotados no debate legislativo e o Judiciário não é o poder adequado para discutir esse tema. “Há um certo messianismo na visão de que o Supremo tem de si próprio e isso faz com que talvez alguns membros do Supremo acreditem que só eles podem dar solução ao Brasil. Há um sentimento de superioridade no que tange ao preparo intelectual e moral”, afirmou.
Ele criticou ainda religiosos a favor da descriminalização, como o movimento Católicas pelo direito de decidir, que há mais de 20 anos luta para que as mulheres brasileiras possam ter o direito de escolha em relação ao aborto. “A Igreja Católica propõe excomunhão para quem pratique o aborto. É completamente incompatível o exercício do catolicismo, a vivência católica, com a defesa do abortamento. Seria como flamenguistas que torcem contra o Flamengo.”
O procurador criticou também o ônus financeiro que o Estado teria caso a descriminalização seja decidida pelo STF.
“Dignidade da mulher é o direito de matar com segurança e às expensas do Estado porque não é só descriminalizar. O Estado tem que custear a morte das crianças. A maioria que discorda do abortamento terá que custear, e os hospitais terão de se aparelhar para essa atividade.”
Países que legalizaram a interrupção da gravidez, contudo, têm uma mudança nos gastos e riscos com esse tipo de procedimento. O Uruguai, por exemplo, descriminalizou o aborto em 2012. Em 2014, de acordo com dados do Ministério da Saúde, foram registradas 6.676 interrupções e uma única morte registrada em decorrência de aborto praticado clandestinamente.
No Brasil, segundo levantamento do Aos Fatos, foram destinados R$ 40,4 milhões dos recursos do SUS para cirurgias de curetagem ou de esvaziamento do útero por aspiração manual intrauterina em 2015.
De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto 2016, 503 mil mulheres interromperam voluntariamente a gravidez no País em 2015. Cerca de metade dos procedimentos clandestinos terminam em internações. Pelo menos 4 mulheres morrem por dia por complicações decorrentes de interrupções da gravidez, de acordo com o Ministério da Saúde.
Segundo a pesquisa, 67% destas mulheres já têm filhos e 88% declaram ter religião — 56% são católicas, 25% são evangélicas ou protestantes e 7% professam outras religiões. Isso significa que 2,6 milhões de mulheres católicas já fizeram aborto ao longo da vida no Brasil.
De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), a cada 2 dias uma mulher morre vítima de aborto ilegal no Brasil. É a quarta causa de morte materna no País, atingindo mais mulheres pobres.
Legislativo x Judiciário no debate sobre aborto
Advogada e professora de Filosofia do Direito, Angela Vidal Gandra Martins afirmou que, “de acordo com a filosofia, a formação do ser se dá de forma contínua e não era possível questionar se o feto é um ser humano”.
“Não se pode atribuir outra natureza a um ser humano em fase de crescimento, onde cada célula já guarda toda sua potencialidade e características genéricas próprias. Nós não questionamos, por exemplo, se um elefante é um animal no ventre da mãe. É óbvio. O direito também deve respeitar o real, o que é a natureza de um ser que se está fazendo”, disse.
De acordo com a jurista, “se a vida deixa de ser um direito absoluto, todos os demais direitos se relativizam, abrindo a caixa de pandora para qualquer arbitrariedade”. A advogada é irmã do ministro do TST (Tribunal Superior Eleitoral) Ives Gandra Martins Filho, contrário ao casamento homoafetivo.
Sobre planejamento familiar, Gandra Martins não fez qualquer referência direta à atuação masculina, mas afirmou que ele deve ser feito antes da relação sexual. “A responsabilidade nos leva a arcar com a consequência dos atos”, afirmou. A jurista disse ainda que feto “não é um dente a ser extraído” e que sua vontade deveria ser levada em conta.
“Não se pode incluir uma hipótese assassina em nome de um momento fugaz de satisfação ou não invocando um direito reprodutivo.”
Na avaliação da advogada, a ADPF “poderia ser considerada um aborto jurídico”. De acordo com ela, uma decisão do Judiciário e não do Legislativo violaria o pluralismo político e prerrogativa de que o poder emana do povo, por meio dos representantes.
Ela também afirmou que não se pode falar de conflito entre o Código Penal, que criminaliza o aborto, e a Constituição, conforme o PSol argumenta na ação, porque o Código está em vigor desde 1940. “Há presunção de constitucionalidade de atos normativos consolidados no tempo”, disse.
A ADPF é vista pela bancada religiosa como uma afronta do Judiciário ao Legislativo. O seminário faz parte da estratégia dos parlamentares católicos e evangélicos em dominar a discussão sobre o tema. O evento foi organizado após a aprovação de requerimentos na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado e nas comissões de Seguridade Social e Família e de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados.
Padre defende castidade em debate sobre aborto
Outro dos convidados da bancada religiosa, o padre Rafael Solano, doutor em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, criticou a distribuição de métodos contraceptivos pelo Estado e defendeu a castidade. O religioso também afirmou que todo tipo de planejamento familiar, especialmente regulado pelo Estado, destrói a consciência da liberdade das pessoas.
“É impressionante perceber como num país carregado de alegria e esperança como o Brasil, quando chega o Carnaval, aquilo que se oferece para a população são camisinhas e pílulas do dia seguinte para destruir a consciência de uma das maiores virtudes, que é a castidade. Falar em castidade hoje mais do que nunca é algo urgente.”
De acordo com Solano, os jovens estão se “perdendo para a pornografia nas redes sociais” e há um pensamento patológico na sociedade atual em que “o corpo está sendo exposto e princípios como pudor e dignidade foram completamente eliminados”.
Na avaliação do padre, não cabe à mulher decidir porque cada criança que vem ao mundo faz parte de uma história divina entre Deus e essa pessoa. “Amiga, o problema não é religioso. É humano. Você não tem direito sobre seu útero, sobre seu corpo, sobre si mesma quando há uma outra pessoa em jogo”, afirmou.
Solano lamentou ainda o plebiscito na Irlanda que decidiu pela descriminalização do aborto no país. “É uma sociedade que está contra um princípio divino. E isso pode acontecer no Brasil ou em qualquer país do mundo”, afirmou. “A sociedade que promove o aborto é uma sociedade imatura, insensível e inconsciente.”
Marcella Fernandes