Após visita ao país, Ashwini K.P. cobra urgência para enfrentar racismo sistêmico e alerta que medidas atuais são insuficientes frente à gravidade do cenário.
O caso da menina de Santa Catarina, induzida a desistir de um aborto legal, e o PL 1904 foram mencionados por Ashwini K.P., Relatora Especial da ONU sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância, em seu relato sobre o Brasil. Segundo ela, a falta de acesso adequado aos direitos de saúde reprodutiva, especialmente ao aborto seguro e legal, agrava os impactos do estupro na vida de meninas e mulheres de grupos raciais e étnicos marginalizados.
A relatora corrobora que o racismo no país é sistêmico, enraizado desde a formação do Estado brasileiro, e alerta que seu desmantelamento exige urgência já que as ações atuais do governo são insuficientes frente à gravidade do cenário.
Entre 5 e 16 de agosto, ela se encontrou com representantes governamentais e da sociedade civil em Florianópolis (SC), Brasília (DF), Salvador (BA), São Luís (MA), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ) para entender a gravidade e a extensão das práticas discriminatórias no país.
O Portal Catarinas participou do encontro na capital catarinense representado pela co-fundadora e diretora executiva Paula Guimarães. Na ocasião, Guimarães apresentou o caso de Sonia Maria de Jesus, mulher negra e surda mantida em condições análogas à escravidão; destacou casos controversos de destituição de guarda pelo Estado e falou sobre o caso da menina de Santa Catarina, citado no relato.
A visita resultou em um diagnóstico preliminar que foi apresentado à imprensa no dia 16 de agosto. Ele está disponível na íntegra, em inglês e português, no portal do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Ashwini K.P elogiou os esforços do governo, como a criação dos ministérios da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas, mas apontou a necessidade de ações mais imediatas e eficazes no enfrentamento à violência institucionalizada, à exclusão social e às falhas na implementação de políticas antirracistas.
Os temas abordados incluíram os direitos territoriais de povos indígenas e quilombolas, racismo ambiental, violência policial, discriminação contra mulheres racialmente marginalizadas e a baixa representatividade política desses grupos. A relatora destacou a falta de dados desagregados como uma questão crítica, especialmente para povos romani, pessoas LGBTI+, migrantes, refugiados e pessoas com deficiência, que enfrentam múltiplas formas de discriminação, pois esses dados são necessários para monitorar a eficácia das políticas públicas.
Ela recomendou a realização de pesquisas e consultas aos grupos raciais e étnicos marginalizados para desenvolver propostas de reparação por injustiças históricas. E enfatizou que “a discriminação racial sistêmica requer reparação sistêmica”.
As relatorias especiais fazem parte dos Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o maior grupo de especialistas independentes do sistema de direitos humanos da organização. Eles apuram e monitoram situações específicas em países ou questões temáticas ao redor do mundo. Trabalham voluntariamente, são independentes de governos ou organizações e atuam em sua capacidade individual.
Ashwini K.P. foi nomeada pelo conselho como a sexta relatora especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata em 2022. A análise completa será apresentada na 59ª sessão do Conselho de Direitos Humanos em junho de 2025.
A seguir, confira alguns pontos tratados no relato:
Aborto
Ashwini K.P. destaca que a criminalização do aborto no Brasil, exceto em casos extremamente restritos, afeta desproporcionalmente meninas e mulheres de grupos raciais e étnicos marginalizados, agravando os impactos do estupro em suas vidas. Ela menciona o caso de 2022, em Santa Catarina, em que uma menina negra de 11 anos foi pressionada por funcionários públicos a não interromper uma gestação resultante de estupro. A relatora recomenda que o Brasil adote a sugestão do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, legalizando e descriminalizando o aborto em todos os casos e garantindo acesso a serviços seguros de aborto e pós-aborto.
K.P. também aponta que a dificuldade de acessar abortos seguros está associada a altos índices de mortalidade materna e violência obstétrica entre mulheres marginalizadas, agravados pela falta de cuidados pré-natais e pós-natais adequados. A precariedade econômica e o racismo sistêmico aumentam ainda mais esses problemas, violando a autonomia corporal das mulheres e criando uma situação inaceitável em relação à saúde reprodutiva.
PL 1904
A relatora expressa grande preocupação com várias propostas legislativas no Congresso Nacional que, em sua opinião, são incompatíveis com as proteções garantidas pelo direito nacional e internacional dos direitos humanos.
Ela critica o Projeto de Lei 1904/2024, que aumenta as penas para quem realiza abortos para até 20 anos de prisão, a Lei 14.701/2023, que restringe a demarcação de terras indígenas, e a Proposta de Emenda Constitucional 45/2023, que visa criminalizar todas as drogas. Segundo K.P., essas medidas violam obrigações internacionais e desafiam o princípio do não retrocesso dos direitos humanos.