Relatora da ONU cobra legalização do aborto em relatório sobre racismo no Brasil

30 de agosto, 2024 Portal Catarinas Por Kelly Ribeiro

Após visita ao país, Ashwini K.P. cobra urgência para enfrentar racismo sistêmico e alerta que medidas atuais são insuficientes frente à gravidade do cenário.

O caso da menina de Santa Catarina, induzida a desistir de um aborto legal, e o PL 1904 foram mencionados por Ashwini K.P., Relatora Especial da ONU sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância, em seu relato sobre o Brasil. Segundo ela, a falta de acesso adequado aos direitos de saúde reprodutiva, especialmente ao aborto seguro e legal, agrava os impactos do estupro na vida de meninas e mulheres de grupos raciais e étnicos marginalizados.

A relatora corrobora que o racismo no país é sistêmico, enraizado desde a formação do Estado brasileiro, e alerta que seu desmantelamento exige urgência já que as ações atuais do governo são insuficientes frente à gravidade do cenário.

Entre 5 e 16 de agosto, ela se encontrou com representantes governamentais e da sociedade civil em Florianópolis (SC), Brasília (DF), Salvador (BA), São Luís (MA), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ) para entender a gravidade e a extensão das práticas discriminatórias no país.

O Portal Catarinas participou do encontro na capital catarinense representado pela co-fundadora e diretora executiva Paula Guimarães. Na ocasião, Guimarães apresentou o caso de Sonia Maria de Jesus, mulher negra e surda mantida em condições análogas à escravidão; destacou casos controversos de destituição de guarda pelo Estado e falou sobre o caso da menina de Santa Catarina, citado no relato.

A visita resultou em um diagnóstico preliminar que foi apresentado à imprensa no dia 16 de agosto. Ele está disponível na íntegra, em inglês e português, no portal do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Ashwini K.P elogiou os esforços do governo, como a criação dos ministérios da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas, mas apontou a necessidade de ações mais imediatas e eficazes no enfrentamento à violência institucionalizada, à exclusão social e às falhas na implementação de políticas antirracistas.

Os temas abordados incluíram os direitos territoriais de povos indígenas e quilombolas, racismo ambiental, violência policial, discriminação contra mulheres racialmente marginalizadas e a baixa representatividade política desses grupos. A relatora destacou a falta de dados desagregados como uma questão crítica, especialmente para povos romani, pessoas LGBTI+, migrantes, refugiados e pessoas com deficiência, que enfrentam múltiplas formas de discriminação, pois esses dados são necessários para monitorar a eficácia das políticas públicas.

Ela recomendou a realização de pesquisas e consultas aos grupos raciais e étnicos marginalizados para desenvolver propostas de reparação por injustiças históricas. E enfatizou que “a discriminação racial sistêmica requer reparação sistêmica”.

As relatorias especiais fazem parte dos Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o maior grupo de especialistas independentes do sistema de direitos humanos da organização. Eles apuram e monitoram situações específicas em países ou questões temáticas ao redor do mundo. Trabalham voluntariamente, são independentes de governos ou organizações e atuam em sua capacidade individual.

Ashwini K.P. foi nomeada pelo conselho como a sexta relatora especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata em 2022. A análise completa será apresentada na 59ª sessão do Conselho de Direitos Humanos em junho de 2025.

A seguir, confira alguns pontos tratados no relato:

Aborto

Ashwini K.P. destaca que a criminalização do aborto no Brasil, exceto em casos extremamente restritos, afeta desproporcionalmente meninas e mulheres de grupos raciais e étnicos marginalizados, agravando os impactos do estupro em suas vidas. Ela menciona o caso de 2022, em Santa Catarina, em que uma menina negra de 11 anos foi pressionada por funcionários públicos a não interromper uma gestação resultante de estupro. A relatora recomenda que o Brasil adote a sugestão do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, legalizando e descriminalizando o aborto em todos os casos e garantindo acesso a serviços seguros de aborto e pós-aborto.

K.P. também aponta que a dificuldade de acessar abortos seguros está associada a altos índices de mortalidade materna e violência obstétrica entre mulheres marginalizadas, agravados pela falta de cuidados pré-natais e pós-natais adequados. A precariedade econômica e o racismo sistêmico aumentam ainda mais esses problemas, violando a autonomia corporal das mulheres e criando uma situação inaceitável em relação à saúde reprodutiva.

PL 1904

A relatora expressa grande preocupação com várias propostas legislativas no Congresso Nacional que, em sua opinião, são incompatíveis com as proteções garantidas pelo direito nacional e internacional dos direitos humanos.

Ela critica o Projeto de Lei 1904/2024, que aumenta as penas para quem realiza abortos para até 20 anos de prisão, a Lei 14.701/2023, que restringe a demarcação de terras indígenas, e a Proposta de Emenda Constitucional 45/2023, que visa criminalizar todas as drogas. Segundo K.P., essas medidas violam obrigações internacionais e desafiam o princípio do não retrocesso dos direitos humanos.

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