Em entrevista exclusiva, a holandesa Astrid Bant faz um balanço sobre seu primeiro ano no Brasil à frente do escritório do Fundo de População da ONU, demonstra sua preocupação com as populações mais vulneráveis diante dos impactos da pandemia e, otimista, aponta sua esperança de que o “novo normal” seja “uma explosão de pensamento criativo e solidário para restaurar e aperfeiçoar o que perdemos”.
(Agência Patrícia Galvão | 28/10/2020)
Há um ano, a holandesa Astrid Bant desembarcou no Brasil para assumir o posto de representante do Fundo de População da ONU no país. Até então, Astrid ocupava o mesmo cargo em Hanói, no Vietnã. Ela chegou ao Brasil, país que já conhecia de outros desafios, com a missão de ajudar a colocar um fim à violência e outras práticas nocivas contra mulheres e meninas, além de ajudar a garantir que toda gravidez seja desejada e que todo parto seja seguro.
No meio do caminho, contudo, veio a pandemia da Covid-19 e todos os planos de ação tiveram que ser adaptados. Ela explica como se deu a atividade durante a pandemia e quais são os rumos esperados para o “novo normal”, em relação a temas como saúde sexual e reprodutiva, população e desenvolvimento e equidade de gênero e raça.
Faz um ano que a senhora chegou ao Brasil para representar o escritório do UNFPA no país. Mais da metade desse tempo se deu durante a pandemia de Covid-19. Como a sra. avalia o período?
Esta é a terceira vez que eu permaneço um longo período no Brasil trabalhando pelas Nações Unidas. Quando eu cheguei eu tinha algum conhecimento, mas nada que pudesse ter me preparado para o que aconteceu neste ano, então estou contente que tenha conseguido conhecer todo mundo, todos os parceiros, antes que viajar se tornasse difícil, o que me ajudou a adaptar o trabalho do UNFPA.
As primeiras preocupações foram em relação a como garantir, na pandemia, o acesso das pessoas a cuidados de saúde, à saúde sexual e reprodutiva e o respeito aos direitos humanos. O UNFPA não parou de trabalhar. Em algumas áreas, tivemos que manter o compromisso que adotamos, inclusive continuando com as intervenções presenciais, como o trabalho feito pela equipe de Assistência Humanitária junto às pessoas migrantes e refugiadas venezuelanas em Roraima e Manaus, que não parou por uma hora sequer. E as pessoas que continuaram trabalhando presencialmente nesses locais são heróis institucionais, porque mantiveram nossas promessas vivas. Nas outras áreas do mandato fizemos diversas adaptações para realizar nossas entregas de forma satisfatória.
Que tipo de adaptações e ações foram feitas, e com quais atores o UNFPA tem dialogado nesse processo?
Nós trabalhamos com o governo brasileiro para garantir o acesso a planejamento reprodutivo, particularmente em relação aos grupos mais vulneráveis. Nosso apoio tem sido, de um lado, no aconselhamento e no oferecimento de boas práticas. Mas outro compromisso enorme feito durante a pandemia foram as compras de itens e insumos para ajudar a continuar ofertando serviços de saúde e proteger a vida das pessoas durante a pandemia. Estou falando de kits de higiene pessoal e limpeza, entregues diretamente para beneficiários.
Em todo o país nós entregamos esses kits para pessoas indígenas, pessoas no sistema prisional, sobreviventes de violência baseada em gênero, para pessoas em situação de rua, entre outras. Nós também apoiamos serviços públicos de saúde em vários estados, ofertando insumos, máscaras, desinfetantes, luvas, máscaras; além de equipamentos de proteção pessoal para trabalhadores de saúde em instituições de saúde sexual e reprodutiva, como clínicas de maternidade. Nós também adquirimos e fornecemos medicações para realização de partos seguros, para o atendimento a sobreviventes de violência sexual, para detecção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis. Nesta área de compras, em particular, o UNFPA realmente deu um passo além no investimento para apoiar os serviços de saúde.
Outra adaptação que fizemos foi trabalhar ainda mais na área de comunicação e mídia, aumentando a conscientização e informando sobre a Covid-19. Pessoas de todos os tipos e públicos foram alcançadas com informações acuradas sobre o assunto. Neste campo tivemos uma longa temporada de webinários com especialistas para discutir informações novas e fazer análises sobre a Covid-19 em relação a estatísticas, grupos mais vulneráveis, entre outros. Foi um esforço de comunicação que realmente atingiu profissionais durante a pandemia. Por último, avançamos muito na área do mandato relacionada à violência baseada em gênero porque, durante a pandemia, as mulheres ficaram confinadas com seus agressores em casa, e foi difícil achar ajuda.
Como garantir direitos, evitar retrocessos e ainda avançar rumo às metas estabelecidas, especialmente no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva? Quais são as chaves para enfrentar essa nova situação?
Eu acredito que algumas coisas, alguns retrocessos, serão inevitáveis. Nós estamos olhando para um evento de dimensões gigantescas e em escala global, não é realista achar que não seremos atingidos. Sabemos por projeções que é bem provável que muitas mulheres não terão acesso ao planejamento reprodutivo, porque o Brasil é um país onde métodos de longa duração são menos utilizados do que nos países próximos, e pessoas que utilizam prescrições de anticoncepcionais mensais ou trimestrais podem deixar de ter acesso. Pessoas muito jovens que se tornarão sexualmente ativas neste ano não terão a chance de comparecer a uma unidade de saúde para obter informações e atendimento pela primeira vez, por exemplo. Isso vai resultar em uma grande quantidade de gravidezes não intencionais. Nós vamos ter milhões de crianças nascidas em situações muito vulneráveis. Será uma geração inteira com seu acesso a direitos ameaçado.
O que temos que fazer é agir e continuar trabalhando ativamente pelos direitos das pessoas jovens, continuar trabalhando na comunicação estratégica. Sem esquecer as pessoas idosas, que também estão em um grupo muito vulnerável e é surpreendente quão poucas organizações da sociedade civil estão trabalhando pelos seus direitos. Isso inclui a elaboração de dados demográficos e a elaboração de políticas públicas.
Outra questão que deve ser abordada é o enorme déficit no acesso a direitos entre pessoas afrodescendentes. Este é o momento de abordar e eliminar a discriminação racial e o racismo institucional. No pós-pandemia haverá um aumento das desigualdades raciais. O que precisamos fazer é analisar o que essa pandemia nos diz sobre quem é vulnerável, por que e como isso pode ser resolvido.
Globalmente, o UNFPA estima que a pandemia represente um retrocesso no enfrentamento à violência baseada em gênero. Por que isso acontece? Por que mulheres e meninas correm maior risco de sofrerem alguma forma de violência durante essa crise de saúde?
A violência baseada de gênero é um fenômeno tão difundido, e sua definição é tão ampla, é quase impossível achar uma mulher no mundo que não tenha sofrido algum impacto psicológico, mesmo em suas formas mais comuns e genéricas, como a objetificação do corpo feminino. No Brasil não há estudos sendo conduzidos sobre a prevalência da violência baseada em gênero durante a pandemia, como existe em outros países, então é difícil dizer se aumentou ou o quanto aumentou. Quando olhamos para as notificações, percebemos que houve uma queda, mas isso também é um indício de subnotificação.
O que podemos dizer é que, nas circunstâncias em que as pessoas precisam ficar em casa, muitas vezes sem trabalho, as pressões diversas, financeiras ou psicológicas, fazem com que a violência aumente. E as mulheres têm ainda menos oportunidades de denunciar ou de viver em outros locais durante esse período.
Nós fizemos muitos esforços ultimamente, mas precisamos atualizar nossas metodologias, trabalhar mais fortemente com novas tecnologias, mas não somente, porque muitas vítimas não têm acesso a essas tecnologias. É preciso ainda reviver coalizões, unir a comunidade, organizações da sociedade civil, organizações de mulheres, unir forças. As pessoas querem combater o problema e precisam de apoio para isso. O feminicídio, por exemplo, é algo que tem sido abordado, as pessoas não querem que aconteça e se queremos realmente preveni-lo, é preciso trabalhar juntos e juntas.
Ninguém sabe quanto tempo isso pode levar e se um “novo normal” vai se estabelecer, mas o UNFPA Brasil já começou pensar em caminhos pós-pandemia? Há algum tema ou desafio específico que o Fundo identifica desde já e que precisará de total atenção quando tudo isso passar ou quando a pandemia estabilizar ou retroceder?
Eu acho que o “novo normal” ainda está bem longe. Mas haverá um ponto em que sentiremos que superamos o pico da crise e a desorientação que ela causou, o abalo das instituições e as dificuldades que o sistema de saúde sofreu. Nós chegaremos ao outro lado e o “novo normal” será tentar restaurar um equilíbrio melhor entre o que é necessário, quem mais precisa de ajuda e o que é preciso oferecer. E nós vamos trabalhar do lado da oferta. Nós vamos trabalhar para ajudar as pessoas a acessarem seus direitos e serviços de saúde sexual e reprodutiva, para que as pessoas idosas se sintam empoderadas, para que as pessoas jovens façam boas escolhas e criem um mundo melhor para elas mesmas. O “novo normal” será uma explosão de pensamento criativo e solidário para restaurar e aperfeiçoar o que perdemos.
Que mensagem precisa ser disseminada para que toda a comunidade brasileira possa se mobilizar para alcançar as metas estabelecidas na Agenda 2030, para que todas as gravidezes sejam desejadas, todos os partos seguros e toda pessoa jovem alcance seu potencial?
Esperamos que a pandemia nos dê o ímpeto necessário para vermos os governos e sociedade civil trabalhando juntos de forma a atingir os diferentes Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A Agenda 2030 está dividida em linhas de ação diversas, que vão do combate à pobreza e à proteção do meio ambiente, além da saúde. Todas essas áreas são interdependentes, mas se conectam entre si e é preciso alcançar o progresso em várias delas para termos o desenvolvimento que precisamos. As desigualdades são, realmente, uma das questões mais preocupantes e um dos maiores desafios que permeia todas essas áreas. Isso precisa ser encarado agora.
É preciso lembrar que a epidemia está causando vários retrocessos nas conquistas em direitos das mulheres, particularmente na área de Saúde Sexual e Reprodutiva. Todo o possível tem que ser feito para garantir seus direitos humanos. Sem mulheres e meninas empoderadas, será impossível diminuir
essas desigualdades que são obstáculo para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O meu comentário final é sobre a vacina. Estamos esperando por ela e, quando chegar, precisamos garantir que os grupos mais vulneráveis tenham acesso. Esse ainda vai ser um grande desafio para o sistema de saúde, e precisamos garantir que pessoas que vivem longe, que não vivem no centro das cidades, que estão em situação de vulnerabilidade e sofrem discriminação, que todos e todas tenham acesso a essa proteção. Acredito que essa condição é algo que temos que lutar agora, para que essas pessoas tenham voz e para que
consigamos fazer com que tenham voz.