Temor do zika vírus ameaça disparar aborto clandestino na América Latina

04 de fevereiro, 2016

(El País, 04/02/2016) Falta de acesso a métodos contraceptivos e a proibição do aborto levam a práticas inseguras

O alerta contra o zika vírus no continente americano e sua vinculação com casos de microcefalia em bebês nascidos de mães infectadas têm levado as autoridades de países como Equador, Colômbia e El Salvador a aconselhar que mulheres evitem a gravidez. Uma recomendação difícil de cumprir em uma região onde os programas de educação sexual são quase inexistentes. Cerca de 24 milhões de mulheres não têm acesso a métodos contraceptivos modernos na região, segundo a ONU. O vírus também se espalha por uma das regiões com mais restrições à interrupção da gestação no mundo: apenas seis países permitem o aborto por malformação fetal; em outros sete, não é autorizado nem para salvar a vida da mulher. Especialistas alertam que as dúvidas sobre os riscos do zika vírus, somadas à falta de opções para que as mulheres decidam se querem ou não ser mães, podem causar um aumento dos abortos clandestinos, inclusive no Brasil.

Na América Latina e no Caribe, cerca de 56% das gestações não são planejadas, como mostra a pesquisa do Instituto Guttmacher — especializado em saúde sexual —, com base em dados do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Conseguir preservativos, contraceptivos farmacológicos (como a pílula) ou DIU é complicado para 33% das mulheres em idade fértil e com parceiro fixo no Haiti; 17% das mulheres na Guatemala; 15% das argentinas; ou 12% das salvadorenhas (segundo dados do UNFPA de 2015). Não são apenas barreiras econômicas, mas também socioculturais, numa região em que, além disso, as taxas de violência sexual são muito elevadas.

As mulheres mais pobres e de zonas rurais combinam as maiores dificuldades de acesso a contraceptivos com a menor quantidade de informações sobre a doença, diz Giselle Carino, diretora-adjunta da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF, na sigla em inglês). Também fazem parte do grupo mais vulnerável ao zika, um vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti — o mesmo da dengue e do chikungunya —, que se prolifera em áreas com menor nível de saneamento e mais locais com água parada.

Atualmente, Equador, Porto Rico, Colômbia, República Dominicana, El Salvador, Honduras, Jamaica e Panamá pediram que as mulheres evitem engravidar; em alguns casos, até mesmo no prazo de um ano e meio. Um conselho não só insuficiente, mas também pouco realista. “O que faz é transferir toda a responsabilidade para as mulheres”, critica Carino. As autoridades de saúde ainda não lançaram programas específicos para prevenir a gravidez, apesar do alerta da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).

“A crise do zika vírus voltou a colocar em evidência a vulnerabilidade dos direitos de reprodução na América. Não falta somente acesso à anticoncepção e ao aborto, a informação, atenção e controles pré-natais também são pontos falhos”, diz Mónica Roa, vice-presidenta da Women’s Link Worldwide. E para determinar que o feto sofre de microcefalia – uma doença neurológica muito grave que faz com que o cérebro e o crânio tenham menor tamanho – é preciso, minimamente, de uma ecografia. “É, além disso, um diagnóstico que não é fácil e que ocorre a partir da 18° semana de gestação. Algumas vezes mais tarde, porque é preciso ver como o desenvolvimento do feto evolui”, explica a especialista em diagnóstico pré-natal Pilar Martínez-Ten.

Mapa do aborto no mundo

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Diante dos riscos do vírus e sua associação com a microcefalia – no Brasil, o país mais afetado pelo vírus, existem 4.783 casos suspeitos desde o final de outubro –, as organizações de mulheres e direitos da reprodução exigem que os Governos revisem suas leis sobre o aborto. “Uma vez que existe esse diagnóstico e com toda a informação à disposição, são as mulheres que devem decidir se levam a gravidez adiante”, argumenta Roa, que diz que nem mesmo nos países nos quais o aborto é permitido em algumas circunstâncias o acesso é fácil. As leis do México, Belize e Panamá permitem a interrupção da gravidez por malformações fetais; no Brasil, somente se o feto sofre de anencefalia ou oferece risco de morte para a mãe, enquanto que na Colômbia é possível se a malformação é mortal. Em outros – como a Argentina – essa opção existe se a saúde física e psicológica da mulher estiver em risco. Na República Dominicana, Chile, El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua e Suriname esse serviço é totalmente proibido. Em todos esses países foram detectados casos de zika.

Os especialistas e as organizações que trabalham pelos direitos da reprodução temem que o medo do zika e as dúvidas sobre seus efeitos no desenvolvimento do feto, que ainda devem ser esclarecidos pelos especialistas, levem a um aumento dos abortos clandestinos. “A experiência nos diz que, apesar das restrições legais, quando as mulheres têm uma gravidez não desejada, especialmente as jovens e aquelas que não têm recursos, acabam por buscar formas inseguras de abortar, o que coloca sua saúde e suas vidas em grave risco”, diz Gillian Kane, assessora da IPAS, uma organização que trabalha para prevenir o aborto inseguro.

Na América Latina e no Caribe ocorrem aproximadamente quatro milhões de abortos inseguros por ano, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), um problema de saúde pública que provoca a morte de milhares de mulheres.

María R. Sahuquillo

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