Zika e o direito de amanhã, por Michael Freitas Mohallem e Marianna Borges Soares

12 de abril, 2016

(O Globo, 12/04/2016) Não há mais espaço no nosso Direito para conciliar a omissão do Estado, a autonomia da mulher e a dor de uma gestação que pode resultar em morte.

Já faz algum tempo que o Brasil abriu os olhos para o direito estrangeiro e o internacional. Quando o Supremo Tribunal Federal superou a literalidade da lei para reconhecer casamentos entre pessoas do mesmo sexo, quando garantiu o direito de defender a legalização de conduta hoje criminalizada ou quando reconheceu a falência do sistema prisional brasileiro, os fez inserindo o Brasil no contexto de países mais desenvolvidos. Em todos estes casos, o que veio de fora foi a inspiração de que era possível mudar aqui o que havia ficado velho.

A crise do zika é um desses momentos em que algumas regras deixam de fazer sentido diante do novo. Não há mais espaço no nosso Direito para conciliar a omissão do Estado, a autonomia da mulher e a dor de uma gestação que pode resultar em morte.

Em 2012, o Supremo ampliou a legalidade do aborto. Agora, além da gravidez resultante de estupro ou com risco à vida da gestante, permite-se a interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Como não há possibilidade de vida extrauterina, obrigar essa gestação equivaleria a tortura, disse o STF. Em caso de anencefalia, há certeza de morte do feto. Já na microcefalia por zika, o risco de morte existe, embora não seja certo. Como proteger a mulher em um caso e negar em outro, quando o resultado pode ser o mesmo?

Parece razoável, portanto, que a decisão de 2012 tenha sua interpretação ampliada a casos de mulheres grávidas portadoras de zika. Esse seria o caminho juridicamente seguro e relativamente conservador. Mas, se ainda temos dúvidas sobre como devemos avançar no plano nacional, no sistema internacional de direitos humanos há muitas certezas.

Importante órgão da ONU recomenda que o aborto seja legalizado em, pelo menos, cinco situações: estupro; incesto; risco à vida ou à saúde da mãe e também em casos de fetos com deficiências consideradas graves. O Brasil, mesmo sendo signatário dos principais tratados internacionais de proteção à saúde e à mulher, ainda não foi capaz de sincronizar sua legislação ao padrão internacionalmente esperado.

Diversos países nos quais nos espelhamos não criminalizam o aborto, deixando a escolha para quem é especialmente afetada pela decisão — a mulher. Estados Unidos, Canadá, Itália, Alemanha, França, Portugal, Espanha, Uruguai e outros, sobretudo na Europa, tratam como privada a decisão de abortar.

O passo decisivo pode se dar justamente em momento semelhante ao que vivemos hoje no Brasil. Quando o Reino Unido foi atingido por epidemia de rubéola, entre os anos 1940 e 1960, descobriu-se que os bebês de gestantes infectadas no primeiro trimestre de gravidez correriam alto risco de cegueira, surdez e microcefalia. Esse foi o estopim para a legalização do aborto naquele Estado.

Já em outros casos, a mudança veio de fora. Há alguns anos o Comitê de Direitos Humanos da ONU tomou decisão histórica e entendeu que o Peru violou o tratado de direitos humanos ao impedir a realização de aborto depois de constatada anencefalia no feto. A decisão coloca o aborto como ramificação do direito à saúde, quando existe a anencefalia.

O que chama mais atenção no caso do zika é que o Estado é o responsável pela baixa efetividade do combate à epidemia, e o reconhece quando o Ministro da Saúde afirma que “estamos perdendo a guerra contra o Aedes”. Como os governos têm dificuldade de manter as cidades minimamente protegidas de epidemias, deveriam poder assegurar o direito de escolha de mulheres que contraíram o vírus.

Se a ínfima presença feminina e a força desproporcional do pensamento religioso inviabilizam esse debate no Congresso Nacional, nossa atenção se volta ao STF. Será decisiva a sensibilidade da ministra Cármen Lúcia, presidente do Tribunal a partir de setembro de 2016, para fazer da autonomia da mulher no Direito brasileiro a marca de sua gestão.

Michael Freitas Mohallem é professor da FGV Direito Rio; Marianna Borges Soares é pesquisadora do Centro de Justiça e Sociedade da FGV Direito Rio.

Acesse no site de origem: Zika e o direito de amanhã  (O Globo, 12/04/2016)

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