(G1) Estávamos em 2002 quando assisti a uma palestra do Frei Betto, então assessor da presidência (estávamos na era Lula), em que ele relacionava a adoção das cisternas rurais na região de seca com a diminuição da violência local. Para quem não está familiarizado, cisternas rurais são grandes tanques feitos à base de cimento (hoje o governo já pensa em confeccioná-los com polietileno também) que servem para armazenar água da chuva. Na época do estio, aquela água serve, pelo menos, para tomar banho e cozinhar a comida. Foi e ainda é um dos principais programas do governo para diminuir a miséria.
Houve um espanto na plateia, é claro. E Frei Betto contou que a pesquisa mostrou o seguinte: com uma cisterna no quintal, as mães não precisavam acordar às vezes uma ou duas horas mais cedo para buscar água longe de casa. Assim, elas podiam aproveitar esse tempo para ficar mais com os filhos, dar mais atenção, ajudá-los a se vestirem antes de ir para a escola. Esse cuidado já estaria sendo o suficiente, segundo o estudo, para que os jovens focassem mais na família e se sentissem menos atraídos para a vida do crime.
Nunca mais ouvi ninguém falar sobre essa pesquisa, mas ela ficou bem fixada na minha memória. Também não sei se ela o palestrante, excelente orador por sinal, estava naquele momento interessado em obter adeptos para sua causa, como sói acontecer, e por isso tratou de florear um pouco mais os resultados.
De qualquer forma, ontem me lembrei dessa pesquisa quando assisti a outra palestra, da professora piauiense Francineide Pires Pereira, doutora da Universidade Federal do Piauí, na 35ª Conferência Internacional do Uso do Tempo. Ela está tentando uma bolsa do CNPq para pesquisar exatamente como (ou se) as políticas de combate à pobreza estão sobrecarregando as mulheres baseando-se no modelo de feminilidade ideal.
Aqui é importante o parêntesis: não estou criticando os programas de transferência de renda, em absoluto. Mas acho bom que haja contribuições de cidadãos que pensam em melhorá-los.
Voltando: o que a professora quer demonstrar com seu estudo é que, por conta de o dinheiro do Bolsa Família ser entregue às mulheres – decisão tomada com base em experiências que mostram que os homens têm menos cuidado e responsabilidade com o dinheiro – elas acabaram sendo sobrecarregadas.
— É mais ou menos como se o governo estivesse dizendo às mulheres que sim, podem ter direito aos R$ 70, mas desde que se responsabilizem ainda mais pela educação da criança. A mulher pobre, além de ter que trabalhar fora e cuidar dos afazeres domésticos, ainda se vê com mais essa forte incumbência, de fiscalizar a ida da criança à escola porque senão toda a família perde aquele dinheiro – disse a professora.
A questão de Francineide vai ainda mais longe. Segundo ela, os programas de transferência de renda, sendo entregues dessa forma às mulheres, fossilizam o modelo de família brasileira num tempo em que já se sabe que muita coisa mudou e muita coisa ainda está para mudar.
— A própria Política Nacional de Assistência Social diz que família é o grupo de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou por solidariedade. Mas sei de casais homossexuais que teriam tentado acessar o Bolsa Família, sem sucesso – disse ela.
Em sua pesquisa, que busca analisar o impacto das políticas de combate à pobreza sobre as relações de gênero na região sudeste de Teresina, Francineide pretende mostrar também que a mulher é muito mais sobrecarregada, às vezes, do que ela mesma pensa que é. Certa vez, ela estava entrevistando uma mulher que, enquanto conversava, lidava com uma criança. Mas, no final, não levou em conta esse tempo de cuidado com o filho como se fosse uma tarefa. É alguma coisa que já entra no automático.
Mulheres que trabalham fora e precisam ficar o tempo todo monitorando a rotina da filharada pelo celular, sabem muito bem que isso é real. No fim do dia, culpa-se a rotina estressante do escritório pelo cansaço sem nem lembrar aquele tempo passado com os meninos, tentando organizar, de longe, suas tarefas.
Mas Francineide vai mais além porque cruza a política de enfrentamento à pobreza com o tempo de cada um. Para ela, o modelo de tempo universal é hegemônico, serve a um modelo “de quem está no topo da pirâmide”:
— Quero utilizar o tempo na minha pesquisa como uma das metodologias para verificar as desigualdades de gênero, a fossilização do modelo familiar que entende como desestruturada qualquer formação que não seja a de pai, mãe e filho. O patricarcado é uma máquina tão automática que se reproduz inclusive na ausência do patriarca. Mas, como sou uma estudiosa de gênero, quero estar alerta para que minha pesquisa não reproduza o modelo dominante, pois considero que a metodologia é que tem que se adequar à teoria. Quando a metodologia só quantifica homens e mulheres está, de novo, materializando o masculino e o feminino. Quando se pesquisa só em cima do modelo que está instalado não se enfrenta a realidade – disse a professora, que ainda espera ganhar a bolsa do CNPq para conseguir viabilizar sua pesquisa.
Confesso que fiquei bem mais interessada nesse pensamento de Francineide do que no resultado que a pesquisa possa vir a mostrar. Até porque, como ela mesma disse, já que trabalha com um estudo qualitativo, tudo pode mudar muito rapidamente sem que o resultado de fato sirva para provocar a tal transformação de políticas públicas tão desejada.
Mas é bom pensar nessa sobrecarga que as mulheres enfrentam e tê-la como uma forma de limite para o empoderamento desejado. Mais independência, mais respeito, ser levada em conta na hora das decisões, sim, é o que se quer. Mas virar burro de carga é outra história. E a pesquisa apresentada pelo IBGE nessa própria Conferência dá conta de que a mulher já trabalha 150% mais em casa, nos afazeres domésticos, do que os homens. Chega, né?
Acesse o PDF: Pesquisa mostra que Bolsa Família pode sobrecarregar as mulheres (G1, 09/08/2013)