Por que o aborto choca mais do que o estupro?, por Simony dos Anjos

11 de julho, 2024 Opinião Por Simony dos Anjos

Esta é uma pergunta que sempre me fiz. E, a cada dia, fica mais evidente que parte conservadora e reacionária da sociedade brasileira defende que a mulher que interrompe uma gestação deve ser severamente punida, inclusive, muito mais que seu abusador. A prova disso é que um segmento significativo dos religiosos cristãos presentes no Congresso Nacional apoiou o projeto de Lei 1904/24, que tinha como principal objetivo punir meninas e mulheres estupradas com pena equivalente a de homicídio simples. Em outras palavras, pela proposta original do projeto, a vítima de um abuso que interrompesse a gestação após 22 semanas poderia ficar até 20 anos presa – o abusador, por no máximo dez anos. 

Felizmente, a população brasileira reagiu, inclusive entre os segmentos cristãos, que são geralmente mais conservadores. Para a população brasileira, uma mulher que interrompe uma gestação fruto de abuso, em qualquer idade gestacional, não deve ser punida. Mas a pergunta ainda persiste em meus ouvidos: por que acham que a mulher deve ser punida de forma mais severa que seu abusador?

Ao longo dos anos fez sentido para mim uma resposta que envolve a articulação entre colonialismo, capitalismo, patriarcado, escravização e cristianização. Nós não podemos ignorar a herança colonial-escravizadora brasileira que colocou as mulheres em dois lugares: 1) o de geradoras de herdeiros; 2) o de geradoras de patrimônio. Em ambos os casos, os corpos das mulheres eram vistos como propriedades: o corpo da esposa era posse do marido e os das escravizadas, indígenas e africanas, posse e objeto de abusos sexuais constantes. 

A qualidade da relação de posse sobre esses corpos poderia mudar, mas o objetivo sempre foi o mesmo: poder. O poder patriarcal, demarcando o lugar do masculino na sociedade; e o poder econômico, demarcando o lugar da branquitude. Para que esse sistema funcionasse bem, era necessário algum suporte moral que pudesse servir aos interesses econômicos e políticos dos colonizadores-escravizadores. E oferecer esse suporte foi, sem dúvida, o papel que as igrejas Católica e Protestante desempenharam. 

As narrativas que alegavam serem vontade de Deus a submissão da mulher e a escravização de pessoas davam uma aparência palatável para os horrores dessa época. Desse modo, a naturalização da violência contra mulheres e corpos negros levou cerca de 300 anos para se assentar no imaginário social brasileiro. Uma sociedade que se acostumou com o estupro constante de negras e indígenas e com a submissão das esposas brancas ao papel de geradora de herdeiros fez com que a cultura do estupro se estabelecesse em nome da “família de bem”. 

Ora, quanto mais se estupravam escravizadas, mais propriedades, maior o acúmulo de capital em forma de gente, maior o acúmulo de riqueza e poder político. Grandes escravocratas colocavam vigilantes para que negras não abortassem suas propriedades. Um bebê negro era visto como um ativo financeiro. Ora, se outrora o aborto era uma ameaça para a economia escravocrata, hoje ele é uma ameaça para o sistema capitalista da uberização da força de trabalho.

A quem interessa que meninas tenham filhos senão àqueles que esperam avidamente para explorar a mão-de-obra desta população? A quem interessa controlar os corpos das mulheres, fazer com que meninas vulnerabilizadas, de maioria negra e pobre, mantenham-se no ciclo da pobreza, da precarização, formando um enorme exército de reserva? 

Assim, o aborto choca muito mais do que o estupro porque a cultura do abuso sexual não ameaça a estrutura capitalista e o moralismo cristão vigentes. Mulheres livres, donas de seus corpos, que escolhem se vão ou não parir filhos para um sistema patriarcal, ameaçam o sistema. O estupro mantém o sistema. 

A família cristã, cujos filhos e mulheres se submetem aos mandos do homem, é uma síntese do capitalismo, no qual negros, mulheres, LGBTQIAPN+, pessoas com deficiências, e tantos outros corpos dissidentes, devem estar submissos ao poder masculino-branco-econômico do capitalista. Na verdade, a estrutura de submissão das mulheres está no centro da organização política, econômica e social do capitalismo. Assim, para manter seu lugar de suporte moral da exploração, narrativas religiosas miram as vítimas de abuso, pois miram em manter esse sistema funcionando,

Por fim, como mulher religiosa, que entende o lugar que o cristianismo tem nessa cadeia exploratória das mulheres, digo um basta a isso! Não em nosso nome! Não permitiremos que religiosos fundamentalistas barganhem poder político e econômico em nome de Deus e às custas da submissão de nossos corpos! Nossos corpos livres são a maior ameaça a um sistema que explora e oprime pessoas.

Simony dos Anjos é cientista social, mestre em Educação e doutoranda em Antropologia. Integra a Rede de Mulheres Negras Evangélicas e é mãe do Bernardo e da Nina.

Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/Unifesp), tendo desenvolvido pesquisas na área do ensino de Sociologia em uma perspectiva antropológica. 

É mestra em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), tendo como enfoque de pesquisa a relação entre Antropologia, Educação e Diversidade. 

É doutoranda em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), desenvolvendo pesquisas sobre a relação entre negritude, igreja evangélica e feminismo.

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