O aumento da obesidade é uma realidade em todas as faixas etárias, em ambos os sexos e em todos os níveis de escolaridade no Brasil. Analisando os dados com um pouco mais de atenção, é possível ver quem mais engordou nas últimas décadas: as mulheres com menos estudo.
(UOL, 01/08/2018 – acesse no site de origem)
Entre 2006 e 2017, houve um aumento de 12,1% para 18,7% na prevalência da obesidade (IMC acima de 30 kg/m²) e de 38,5% para 51,2% na de excesso de peso (IMC acima de 25 kg/m²) entre as mulheres, segundo os dados do sistema Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), do Ministério da Saúde. Entre aquelas que têm até oito anos de estudo, os números saltam para 25,5% e 61,7%, respectivamente, na última pesquisa. O IMC é calculado dividindo o peso da pessoa por sua altura multiplicada ao quadrado.
Observando essa tendência desde levantamentos anteriores, o OBHA (Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares), da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), vem trabalhando em um estudo qualitativo para traçar os motivos que levaram a um aumento mais acentuado dos índices de obesidade entre as mulheres mais pobres.
Segundo a coordenadora do OBHA Denise Oliveira e Silva, a desigualdade social radicalizou os fatores externos que causam o aumento do peso. “Os alimentos processados, que eram consumidos pelas classes mais altas, passam a ser os alimentos mais baratos, para as classes de menor renda. Também há uma dificuldade em se exercitar”, disse a nutricionista e antropóloga da alimentação em entrevista ao UOL TAB #166.
Na pesquisa, feita com beneficiárias do programa Bolsa Família, ainda se observou que a experiência da fome é presente na história de vida de grande parte delas –o que pode ter alterado o metabolismo, passando a queimar menos calorias. “Essa hipótese ainda vai ser mais estudada, de uma possível economia energética que ocorre desde a experiência da fome. Todas elas falam que passaram fome na infância”, contou Denise. A OMS (Organização Mundial da Saúde) assume a presença de fome e de carências nutricionais na infância como fator de risco para obesidade na fase adulta.
Pobres, negras e gordas
A pesquisa da Fiocruz cruzou dados do Ministério da Saúde e do CadÚnico, que reúne as famílias de baixa renda atendidas pelos programas do governo, chegando a um grupo de mulheres com idades entre 20 e 55 anos, sendo a maior concentração na faixa entre 30 e 39 anos (52,6%). Do total, 71,6% são negras (pretas ou pardas).
Com relação às regiões, 48,6% são moradoras do Nordeste, 26,4% do Sudeste, 11,4% do Sul, 8,7% do Norte e 4,9% do Centro-Oeste. A média de peso foi de 83 kg, com IMC médio de 33,9 kg/m². Constatou-se ainda que 58,7% apresentaram obesidade grau 1 (IMC entre 30 e 34,9 kg/m²), 26,8% obesidade grau 2 (IMC entre 35 e 39,9 kg/m²) e 14,5% obesidade grau 3 (IMC maior ou igual a 40 kg/m²).
Logo no início da pesquisa, as entrevistadoras identificaram duas palavras consideradas tabu entre as mulheres: “fome” e “obesa”. Para elas, “obesa” não expressa sua experiência corporal e está associada a um significado de doença, sendo substituída por eufemismos como “gordinha”, “cheinha” e “acima do peso”. Com histórico de dificuldades na infância, especialmente na região Nordeste, a palavra “fome” resgata um sentimento traumático para grande parte das mulheres ouvidas pela Fiocruz.
“Eu passei muita necessidade com minha família, eu não quero nem lembrar (…). Não tinha nada para comer, passamos dois meses comendo mingau de milho (…). Eu era magrinha como meus irmãos e ainda minha mãe dizia que eu era ruim pra comer (…). Eu não gosto de me lembrar desse momento da fome, outro dia eu converso com você”, disse uma entrevistada residente de uma área de comunidade em uma capital.
O aumento de peso mais acentuado coincide com transformações no corpo em decorrência de momentos como primeira menstruação, gravidez, amamentação e menopausa. Grande parte das entrevistadas é faxineira ou empregada doméstica, tendo apenas o domingo de descanso. “Elas voltam para a casa tarde e optam por alimentos fáceis de preparar e para toda a família, como miojo e lasanha”, conta Denise.
O peso aumenta sem a gente perceber (…). O corpo aumenta na vida da mulher e a gente não liga (…). Ficar prenha é danado para engordar e depois não se vai ter o corpo de antes e ainda vem um menino atrás do outro
Entrevistada de uma cidade rural
Outra questão observada no estudo foi uma reação ao preconceito enfrentado nos serviços de saúde. Cansadas de serem culpabilizadas por médicos e enfermeiros por estarem acima do peso, a maioria diz que só procura o sistema de saúde quando tem um problema mais grave.
Segundo a coordenadora da Fiocruz, elas afirmam não conseguir seguir as recomendações médicas de uma alimentação mais saudável ou atividades físicas. “Elas também trazem o discurso de uma imposição de um corpo que não vão ter. Passam para elas uma imagem inatingível.”
Uma das conclusões do estudo é que, embora a OMS considere a fome como fator de risco para a obesidade, não há ações públicas para monitoramento em populações que vivenciaram a fome e indivíduos que passaram por desnutrição infantil.
Além disso, falta uma maior atenção com a saúde da mulher depois do nascimento dos filhos, diz a pesquisadora da Fiocruz. “É preciso descolar da política pública o papel da mulher como objeto reprodutivo. Hoje a preocupação é só com o bebê. O corpo feminino é negligenciado”, avalia Denise.
Até eu ter problema de pressão alta, eu não ligava para meu peso (…) Sabia que estava gordinha, mas ia levando a vida assim (…) Não vou ser artista e madame para ficar fazendo dieta (…). Mas o médico disse que, se eu não diminuísse a gordura, eu teria um AVC. Aí, me lembrei de meus filhos pequenos e estou tentando fazer dieta (…). Os médicos falam, mas não ajudam quem é pobre (…). Eles ficam com raiva da gente, como se ‘nóis tem’ culpa de pedir consulta
Entrevistada da periferia de uma metrópole
A coordenadora da OBHA ainda ressalta a necessidade de mais informação sobre uma alimentação saudável e da ampliação de programas como Academia da Saúde, do governo federal, que promove práticas de atividades físicas e educação em saúde em locais próximos a unidades básicas de saúde.
Ações do ministério
Segundo Michele Lessa, coordenadora-geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, a pasta apoiou a construção de 4.000 polos do programa em todos os estados brasileiros e mais de 1.200 já foram concluídos.
Ela ressalta ainda que os dados da última pesquisa Vigitel mostram uma melhoria de hábitos saudáveis, com um aumento de 5%, em média, do consumo de frutas e hortaliças em cinco ou mais dias da semana entre os adultos.
Apesar disso, há uma diferença entre o consumo das mulheres em diferentes faixas de escolaridade: 46,1% das mulheres com 12 ou mais anos de estudo e 38,2% das com até oito anos têm esse hábito.
Entre as ações do ministério para conter o avanço da obesidade no país, estão materiais como o Guia Alimentar para a População Brasileira, o programa Crescer Saudável –para prevenção, controle e tratamento da obesidade infantil– e campanhas para melhoria dos rótulos de alimentos industrializados, além da redução de componentes como sódio e açúcar. A capacitação dos profissionais de saúde para um atendimento adequado também é vista como um desafio.
“É importante que os profissionais tenham uma escuta qualificada e saibam que a obesidade não é culpa da população. Do ponto de vista de política pública, precisamos facilitar o acesso à informação para escolhas mais saudáveis”, diz a doutora em nutrição social.
Mirella Nascimento