(Folha de S.Paulo, 17/06/2016) Quando a socióloga Fátima Pelaes se elegeu pela primeira vez deputada federal pelo PFL do Amapá, em 1990, a luta feminista já tinha promovido mudanças profundas na sociedade brasileira. Mais escolarizadas, com menor número de filhos, as mulheres invadiram a cena pública, quer no mundo do trabalho quer no mundo da política. Autonomia e independência se espalhavam, transformando as relações familiares, jogando no lixo velhos tabus como o da virgindade, o direito de jogarem futebol, entre outros absurdos. Abraçando novas identidades, o feminismo enfrentava cada vez mais a cultura do patriarcado e do racismo.
Fatima chegou em Brasília, pós aprovação da nova Constituição Brasileira e quando a bancada feminina estava no auge do seu reconhecimento pela atuação que teve durante o processo constituinte. Apesar de ter sido eleita pelo PFL, um partido sem compromisso com a transformação social, surpreendentemente Fátima deu uma guinada à esquerda e passou a defender a agenda feminista no Congresso Nacional, inclusive o Projeto de Lei 1135/91, que propunha a descriminalição do aborto no Brasil.
Seu compromisso com os direitos das mulheres durou 03 mandatos (1991-1994, 1995-1998 e 1999-2002). Nas eleições de 2002, já no PSDB, foi candidata a Governadora pelo Estado do Amapá, mas não se elegeu, no mesmo ano em que, após um grave acidente “conheceu Jesus na sua vida”.
Convertida ao pentecostalismo, voltou à Câmara Federal, depois das eleições de 2006 e 2010, pelo PMDB, quando jogou pela janela o preceito constitucional do estado laico e colocou seu mandato “à disposição de Deus, firmando um compromisso de glorificar o nome do Senhor naquela Casa de Leis”. Passou, então, a defender a criminalização do aborto, inclusive em caso de estupro – previsto no Código Penal desde 1940 e, ainda, votou contra um projeto de Lei que propunha a igualdade salarial entre homens e mulheres para o mesmo cargo.
Soma-se à trajetória da nova Secretária, escolhida pelo governo interino misógino e racista do Temer, além das suas posições bíblicas, a acusações de desvio de dinheiro (relacionado à Operação Voucher da Polícia Federal, em 2011) num processo do Supremo Tribunal Federal – despachado ano passado para a Justiça Federal do Amapá pelo ministro Gilmar Mendes.
A nomeação de Fátima Pelaes como Secretária de Política para as Mulheres do Ministério da Justiça foi mais um descalabro do machismo e da ignorância política que permeia esse pessoal que solapou o poder. Não bastasse um ministério de homens brancos, sua nomeação reflete o total desconhecimento dos avanços duramente conquistados pelas mulheres nas últimas décadas, colocando em riscos nossa autonomia, liberdade e agenda de direitos, na medida em que nomeia alguém que não respeita a maternidade voluntária e livre como um direito humano fundamental.
Não esperava nada melhor desse Governo imposto pelo golpe político-jurídico-midiático. A mais recente Portaria do Ministério da Justiça Nº 586/junho 2016, tendo a Fátima Pelaes como testemunha, não leva em conta as redes de enfrentamento e proteção às mulheres em situação de violência existente no país e construídas com muito esforço, ignoram solenemente o CNDM – Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e trata a violência contra as mulheres como um caso de polícia, tão somente.
Em nome da mãe, da filha, das santas e das putas, não reconheço e nem dialogo com este governo.
A rua é o meu lugar de resistência!
Schuma Schumaher – ativista feminista e antirracista, escritora, coordenadora executiva da Redeh, integrante da AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras e da #partidA.
Acesse no PDF: Fatima Pelaes: na contramão dos direitos das mulheres e do estado laico, por Schuma Schumaher (Folha de S.Paulo, 17/06/2016)