RESUMO A filósofa norte-americana Judith Butlerescreve sobre sua recente passagem pelo Brasil. Ela comenta os ataques que sofreu, explica sua teoria de gênero e procura entender o ódio dirigido a um pensamento que defende a dignidade e os direitos sexuais e que condena a violência contra mulheres e pessoas trans.
(Folha de S.Paulo, 19/11/2017 – acesse no site de origem)
Desde o começo, a oposição à minha presença no Brasil esteve envolta em uma fantasia. Um abaixo-assinado pedia ao Sesc Pompeia que cancelasse uma palestra que eu nunca iria ministrar. A palestra imaginária, ao que parece, seria sobre “gênero”, embora o seminário planejado fosse dedicado ao tema “Os fins da democracia” (“The ends of democracy”).
Ou seja, havia desde o início uma palestra imaginada ao invés de um seminário real, e a ideia de que eu faria uma apresentação, embora eu estivesse na realidade organizando um evento internacional sobre populismo, autoritarismo e a atual preocupação de que a democracia esteja sob ataque.
Não sei ao certo que poder foi conferido à palestra sobre gênero que se imaginou que eu daria. Deve ter sido uma palestra muito poderosa, já que, aparentemente, ela ameaçou a família, a moral e até mesmo a nação.
Para aqueles que se opuseram à minha presença no Brasil, “Judith Butler” significava apenas a proponente de uma ideologia de gênero, a suposta fundadora desse ponto de vista absurdo e nefasto, alguém —aparentemente— que não acredita em restrições sexuais, cuja teoria destrói ensinamentos bíblicos e contesta fatos científicos.
Como tudo isso aconteceu e o que isso significa?
A TEORIA
Consideremos o que eu de fato escrevi e no que de fato acredito e comparemos isso com a ficção interessante e nociva que deixou tanta gente alarmada.
No final de 1989, quase 30 anos atrás, publiquei um livro intitulado “Gender Trouble” (lançado em português em 2003 como “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade”, Civilização Brasileira), no qual propus uma descrição do caráter performativo do gênero. O que isso significa?
A cada um de nós é atribuído um gênero no nascimento, o que significa que somos nomeados por nossos pais ou pelas instituições sociais de certas maneiras.
Às vezes, com a atribuição do gênero, um conjunto de expectativas é transmitido: esta é uma menina, então ela vai, quando crescer, assumir o papel tradicional da mulher na família e no trabalho; este é um menino, então ele assumirá uma posição previsível na sociedade como homem.
No entanto, muitas pessoas sofrem dificuldades com sua atribuição —são pessoas que não querem atender aquelas expectativas, e a percepção que têm de si próprias difere da atribuição social que lhes foi dada.
A dúvida que surge com essa situação é a seguinte: em que medida jovens e adultos são livres para construir o significado de sua atribuição de gênero?
Eles nascem na sociedade, mas também são atores sociais e podem trabalhar dentro das normas sociais para moldar suas vidas de maneira que sejam mais vivíveis.
E instituições sociais, incluindo instituições religiosas, escolas e serviços sociais e psicológicos, também deveriam ter capacidade de apoiar essas pessoas em seu processo de descobrir como viver melhor com seu corpo, buscar realizar seus desejos e criar relações que lhes sejam proveitosas.
Algumas pessoas vivem em paz com o gênero que lhes foi atribuído, mas outras sofrem quando são obrigadas a se conformar com normas sociais que anulam o senso mais profundo de quem são e quem desejam ser. Para essas pessoas é uma necessidade urgente criar as condições para uma vida possível de viver.
LIBERDADE E NATUREZA
Assim, em primeiro lugar e acima de tudo, “Problemas de Gênero” buscou afirmar a complexidade de nossos desejos e identificações de gênero e se juntar àqueles integrantes do movimento LGBTQ moderno que acreditavam que uma das liberdades fundamentais que precisam ser respeitadas é a liberdade de expressão de gênero.
O livro negou a existência de uma diferença natural entre os sexos? De maneira nenhuma, embora destaque a existência de paradigmas científicos divergentes para determinar as diferenças entre os sexos e observe que alguns corpos possuem atributos mistos que dificultam sua classificação.
Também afirmei que a sexualidade humana assume formas diferentes e que não devemos presumir que o fato de sabermos o gênero de uma pessoa nos dá qualquer pista sobre sua orientação sexual. Um homem masculino pode ser heterossexual ou gay, e o mesmo raciocínio se aplica a uma mulher masculina.
Nossas ideias de masculino e feminino variam de acordo com a cultura, e esses termos não possuem significados fixos. Eles são dimensões culturais de nossas vidas que assumem formas diferentes e renovadas no decorrer da história e, como atores históricos, nós temos alguma liberdade para determinar esses significados.
Mas o objetivo dessa teoria era gerar mais liberdade e aceitação para a gama ampla de identificações de gênero e desejos que constitui nossa complexidade como seres humanos.
Esse trabalho, e muito do que desenvolvi depois, também foi dedicado à crítica e à condenação da violação e da violência corporais.
Além disso, a liberdade de buscar uma expressão de gênero ou de viver como lésbica, gay, bissexual, trans ou queer (essa lista não é exaustiva) só pode ser garantida em uma sociedade que se recusa a aceitar a violência contra mulheres e pessoas trans, que se recusa a aceitar a discriminação com base no gênero e que se recusa a transformar em doentes e aviltar as pessoas que abraçaram essas categorias no intuito de viverem uma vida mais vivível, com mais dignidade, alegria e liberdade.
Meu compromisso é me opor às ofensas que diminuam as chances de alguém viver com alegria e dignidade. Assim, sou inequivocamente contra o estupro, o assédio e a violência sexual e contra todas as formas de exploração de crianças.
Liberdade não é —nunca é— a liberdade de fazer o mal. Se uma ação faz mal a outra pessoa ou a priva de liberdade, essa ação não pode ser qualificada como livre —ela se torna uma ação lesiva.
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
De fato, algo que me preocupa é a frequência com que pessoas que não se enquadram nas normas de gênero e nas expectativas heterossexuais são assediadas, agredidas e assassinadas.
As estatísticas sobre feminicídio ilustram o ponto. Mulheres que não são suficientemente subservientes são obrigadas a pagar por isso com a vida.
Pessoas trans e travestis que desejam apenas a liberdade de movimentar-se no mundo público como são e desejam ser sofrem frequentemente ataques físicos são mortas.
Mães correm o risco de perder seus filhos se eles saírem do armário; muitas pessoas ainda perdem seus empregos e a relação com seus familiares quando saem do armário. O sofrimento social e psicológico decorrente do ostracismo e condenação social é enorme.
A injustiça radical do feminicídio deveria ser universalmente condenada, e as transformações sociais profundas que possam tornar esse crime impensável precisam ser fomentadas e levadas adiante por movimentos sociais e instituições que se recusam a permitir que pessoas sejam mortas devido a seu gênero e sua sexualidade.
No Brasil, uma mulher é assassinada a cada duas horas. A tortura e o assassinato recente de Dandara dos Santos, em Fortaleza, foi apenas um exemplo explícito da matança generalizada de pessoas trans no Brasil, uma matança que valeu ao Brasil a fama de ser o país mais conhecido pelo assassinato de pessoas LGBT.
São esses os males sociais inequívocos e atrocidades aos quais me oponho, e meu livro —bem como o movimento queer no qual ele se insere— procura promover um mundo sem sofrimento e violência desse tipo.
IDEOLOGIA
A teoria da performatividade de gênero busca entender a formação de gênero e subsidiar a ideia de que a expressão de gênero é um direito e uma liberdade fundamentais. Não é uma “ideologia”.
Em geral, uma ideologia é entendida como um ponto de vista que é tanto ilusório quanto dogmático, algo que “tomou conta” do pensamento das pessoas de uma maneira acrítica.
Meu ponto de vista, entretanto, é crítico, pois questiona o tipo de premissa que as pessoas adotam como certas em seu cotidiano, e as premissas que os serviços médicos e sociais adotam em relação ao que deve ser visto como uma família ou considerado uma vida patológica ou anormal.
Quantos de nós ainda acreditamos que o sexo biológico determina os papéis sociais que devemos desempenhar? Quantos de nós ainda sustentamos que os significados de masculino e feminino são determinados pelas instituições da família heterossexual e da ideia de nação que impõe uma noção conjugal do casamento e da família?
Famílias queers e travestis adotam outras formas de convívio íntimo, afinidade e apoio. Mães solteiras têm laços de afinidade diferentes. A mesma coisa se dá com famílias mistas, nas quais as pessoas se casam novamente ou se juntam com famílias, criando amálgamas muito diferentes daqueles vistos em estruturas familiares tradicionais.
Encontramos apoio e afeto através de muitas formas sociais, incluindo a família, mas a família é também uma formação histórica: sua estrutura e seu significado mudam ao longo do tempo e do espaço. Se deixamos de afirmar isso, deixamos de afirmar a complexidade e a riqueza da existência humana.
IGREJA
A ideia de gênero como ideologia foi introduzida por Joseph Ratzinger em 1997, antes de ele se tornar o papa Bento 16. O trabalho acadêmico de Richard Miskolci e Maximiliano Campana1 acompanha a recepção desse conceito em diversos documentos do Vaticano.
Em 2010, o argentino Jorge Scala lançou um livro intitulado “La Ideologia de Género”, que foi traduzido ao português por uma editora católica [Katechesis]. Esse pode ter sido um ponto de virada para as recepções de “gênero” no Brasil e na América Latina.
De acordo com a caricatura feita por Scala, aqueles que trabalham com gênero negam as diferenças naturais entre os sexos e pensam que a sexualidade deve ser livre de qualquer restrição. Aqueles que se desviam da norma do casamento heterossexual são considerados indivíduos que rejeitam todas as normas.
Vista por essa lente, a teoria de gênero não só nega as diferenças biológicas como gera um perigo moral.
No aeroporto de Congonhas, em São Paulo, uma das mulheres que me confrontaram começou a gritar coisas sobre pedofilia. Por que isso? É possível que ela pense que homens gays são pedófilos e que o movimento em favor dos direitos LGBTQI nada mais é do que propaganda pró-pedofilia.
Então fiquei pensando: por que um movimento a favor da dignidade e dos direitos sexuais e contra a violência e a exploração sexual é acusado de defender pedofilia se, nos últimos anos, é a Igreja Católica que vem sendo exposta como abrigo de pedófilos, protegendo-os contra processos e sanções, ao mesmo tempo em que não protege suas centenas de vítimas?
Será possível que a chamada ideologia de gênero tenha virado um espectro simbólico de caos e predação sexual precisamente para desviar as atenções da exploração sexual e corrupção moral no interior da Igreja Católica, uma situação que abalou profundamente sua autoridade moral?
Será que precisamos compreender como funciona “projeção” para compreendermos como uma teoria de gênero pôde ser transformada em “ideologia diabólica”?
BRUXAS
Talvez aqueles que queimaram uma efígie minha como bruxa e defensora dos trans não sabiam que aquelas que eram chamadas de bruxas e queimadas vivas eram mulheres cujas crenças não se enquadravam nos dogmas aceitos pela Igreja Católica.
Ao longo da história, atribuíram-se às bruxas poderes que elas jamais poderiam, de fato, ter; elas viraram bodes expiatórios cuja morte deveria, supostamente, purificar a comunidade da corrupção moral e sexual.
Considerava-se que essas mulheres tinham cometido heresia, que adoravam o diabo e tinham trazido o mal à comunidade em lugares como Salem (EUA), em Baden-Baden (Alemanha), nos Alpes Ocidentais (Áustria) e na Inglaterra. Com muita frequência esse “mal” era representado pela libertinagem.
O fantasma dessas mulheres como o demônio ou seus representantes encontra, hoje, eco na “diabólica” ideologia de gênero. E, no entanto, a tortura e o assassinato dessas mulheres por séculos como bruxas representaram um esforço para reprimir vozes dissidentes, aquelas que questionavam certos dogmas da religião.
Quem pôs fim a esse tipo de perseguição, crueldade e assassinato foram pessoas sensatas de dentro da Igreja Católica, que insistiram que a queima de bruxas não representava os verdadeiros valores cristãos. Afinal, queimar bruxas era uma forma de feminicídio executado em nome de uma moralidade e ortodoxia.
Embora eu não seja estudiosa do cristianismo, entendo que uma de suas grandes contribuições tenha sido a doutrina do amor e do apreço pela preciosidade da vida —muito longe do veneno da caça às bruxas.
DEMOCRACIA
Embora apenas minha efígie tenha sido queimada, e eu mesma tenha saído ilesa, fiquei horrorizada com a ação.
Nem tanto por interesse próprio, mas em solidariedade às corajosas feministas e pessoas queer no Brasil que estão batalhando por maior liberdade e igualdade, que buscam defender e realizar uma democracia na qual os direitos sexuais sejam afirmados e a violência contra minorias sexuais e de gênero seja abominada.
Aquele gesto simbólico de queimar minha imagem transmitiu uma mensagem aterrorizante e ameaçadora para todos que acreditam na igualdade das mulheres e no direito de mulheres, gays e lésbicas, pessoas trans e travestis serem protegidos contra violência e assassinato.
Pessoas que acreditam no direito dos jovens exercerem a liberdade de encontrar seu desejo e viverem num mundo que se recusa a ameaçar, criminalizar, patologizar ou matar aqueles cuja identidade de gênero ou forma de amar não fere ninguém.
Essa é a visão do arcebispo Justin Welby, da Inglaterra, que destacou recentemente o direito dos jovens explorarem sua identidade de gênero, apoiando uma atitude mais aberta e acolhedora em relação a papéis de gênero na sociedade.
Essa abertura ética é importante para uma democracia que inclua a liberdade de expressão de gênero como uma das liberdades democráticas fundamentais, que enxergue a igualdade das mulheres como peça essencial de um compromisso democrático com a igualdade e que considere a discriminação, o assédio e o assassinato como fatores que enfraquecem qualquer política que tenha aspirações democráticas.
Talvez o foco em “gênero” não tenha sido, no final, um desvio da pergunta de nosso seminário: quais são os fins da democracia?
Quando violência e ódio se tornam instrumentos da política e da moral religiosa, então a democracia é ameaçada por aqueles que pretendem rasgar o tecido social, punir as diferenças e sabotar os vínculos sociais necessários para sustentar nossa convivência aqui na Terra.
Eu vou me lembrar do Brasil por todas as pessoas generosas e atenciosas, religiosas ou não, que agiram para bloquear os ataques e barrar o ódio.
São elas que parecem saber que o “fim” da democracia é manter acesa a esperança por uma vida comum não violenta e o compromisso com a igualdade e a liberdade, um sistema no qual a intolerância não se transforma em simples tolerância, mas é superada pela afirmação corajosa de nossas diferenças.
Então todos começaremos a viver, a respirar e a nos mover com mais facilidade e alegria —é esse o objetivo maior da corajosa luta democrática que tenho orgulho de integrar: nos tornarmos livres, sermos tratados como iguais e vivermos juntos sem violência.
1. MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Direito às diferenças: notas sobre formação jurídica e as demandas de reconhecimento na sociedade brasileira contemporânea”. “Hendu “” Revista Latino-Americana de Direitos Humanos”, abril de 2017.
JUDITH BUTLER, 61, referência nos estudos de gênero e teoria queer, é codiretora do programa de teoria crítica da Universidade da Califórnia em Berkeley. Lança o livro “Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo” pela Boitempo.
CLARA ALLAIN é tradutora. 19