Vítimas apontam despreparo de profissionais em hospitais. Ministério Público Federal lançou campanha para divulgação da lei 12.845
(G1, 22/11/2018 – acesse no site de origem)
A lei 12.845 está há cinco anos em vigor. Sancionada em 2013, a lei garante atendimento integral e gratuito no Sistema Único de Saúde às vítimas de estupro. Mais do que isso, assegura que a palavra da vítima deve ser sempre levada em consideração: ela não precisa ter feito um boletim de ocorrência para receber o atendimento médico.
Muitos ainda desconhecem a lei e o que podem exigir em casos de estupro. Saber que ela existe, porém, também não garante o atendimento: vítimas relatam ter enfrentado dificuldades em hospitais que não são referência e despreparo por parte de quem atende.
A advogada Ana Lucia Dskeunecke faz parte de uma rede de juristas que costuma atender vítimas e orientá-las quando uma violência acontece, a DeFEMDe. Segundo ela, o atendimento médico deve ser prioridade.
“A primeira coisa que ela deve fazer é procurar o atendimento de saúde. Essa é a primeira parte. Ela não precisa fazer o boletim de ocorrência para ter acesso à profilaxia. Depois, se ela quiser, pode ir na delegacia fazer o boletim de ocorrência”, explica a advogada Ana Lucia Dskeunecke.
O protocolo de atendimento proposto pelo Ministério da Saúde inclui medicamentos antirretrovirais para prevenir o HIV e vacinas como a da hepatite B. O atendimento psicológico também está previsto. Além disso, em casos de vítimas mulheres, a pílula contraceptiva de emergência, conhecida como pílula do dia seguinte, também é administrada.
No Brasil, o Código Penal prevê o aborto legal em três casos, um deles em caso de estupro. Mas antes da medida, existe a profilaxia com a pílula do dia seguinte para evitar a gravidez.
Quando ir à delegacia?
Referência no atendimento de vítimas de estupro em São Paulo, o hospital Pérola Byington recebe entre 12 e 15 casos de estupro por dia. André Malavasi, diretor de ginecologia do hospital, diz que a vítima pode ficar em tratamento por até seis meses, sempre com acompanhamento do hospital.
Ainda segundo ele, ir à delegacia antes ou depois de receber atendimento médico depende da vontade da vítima e de quanto tempo se passou desde a agressão.
“O tratamento precisa ser feito o mais rápido possível. Mas a coleta da prova também é uma prioridade. Se ela acabou de ser violentada e vai na delegacia, passa no médico legista e rapidamente recebe a profilaxia. Esse é o melhor cenário. Se ela está com 70 horas de abuso sexual, ela não vai perder tempo indo na delegacia antes, ela tem que ir rápido para o atendimento médico primeiro”, diz.
Tanto Dskeunecke quanto Malavasi reforçam a importância do atendimento médico feito nas primeiras 72 horas após a agressão e que o boletim de ocorrência só é necessário caso a vítima queira uma investigação.
“Se ela for primeiro ao hospital e depois na delegacia, não tem problema. Muitas vezes insistimos para que ela faça o boletim de ocorrência posteriormente para que ela tenha provas para em um futuro conseguir prender esse agressor. Então uma coisa não inviabiliza a outra”, diz Malavasi.
Dskeunecke explica que não há obrigatoriedade de registro de ocorrência de forma alguma e que muitas não o fazem porque tem medo: conhecem seus agressores e/ou se sentem ameaçadas: “Ela registra somente se quiser. Além disso, no atendimento médico, se ela quiser, e somente com autorização dela, o médico pode notificar a ocorrência a polícia”.
O que fazer em caso de estupro:
- Procure atendimento médico o mais rápido possível; as primeiras 72 horas são muito importantes para evitar doenças e gravidez.
- Não há necessidade do boletim de ocorrência para que o atendimento médico seja feito.
- Caso queira que o caso seja investigado, faça o boletim de ocorrência logo após o atendimento médico. Após o registro, a vítima é encaminhada para o IML para o exame de corpo de delito.
Dskeunecke também explica que antes, além de fazer o boletim de ocorrência, a vítima tinha um prazo de seis meses para dar seguimento ao processo contra seu estuprador. Agora basta fazer o boletim.
Sancionada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Tofolli, em 24 de setembro de 2018, enquanto ele ocupava temporariamente o cargo de Presidente da República, a lei 13.718 garante que é obrigatória a abertura de inquérito policial uma vez que a vítima tenha feito o boletim de ocorrência.
Para a advogada, a lei tira a responsabilidade da vítima de buscar uma investigação: “Isso mudou bastante o nosso caminho no sentindo de não colocar mais a mulher como a responsável para poder denunciar e ir atrás. Isso é muito importante”.
Despreparo
Mesmo garantido por lei, o atendimento no Brasil- seja pela polícia ou pelos médicos- é bastante criticado pelas vítimas, que costumam considerar o atendimento ruim como uma “segunda violência”.
Sheylli Caleffi foi estuprada durante o réveillon em uma cidade no Espírito Santo. Na época, não sabia da existência da lei e foi direto para a polícia. Teve dificuldades para conseguir registrar um boletim de ocorrência. Um dos policiais chegou a pedir o endereço do estuprador para fazer o registro. (Veja o relato completo no vídeo)
Após o trauma e sem conseguir que o agressor fosse preso, ela resolveu fazer um vídeo sobre o que não deve ser dito nem perguntado às vítimas de estupro. Desde então os relatos de mulheres que foram agredidas sexualmente não pararam de chegar. Hoje, ela concentra os relatos em um grupo de apoio às vítimas no Facebook chamado “As incríveis mulheres que vão morrer duas vezes”.
“O denominador comum do atendimento às vítimas é que a maioria não vai nem na polícia nem no médico. Por medo. E quando elas vão para o atendimento, a maioria vai relatar uma segunda violência no atendimento ou até terceira se ela for na polícia e no médico”, diz Caleffi.
“Qualquer vítima (de estupro) pode ser atendida em hospitais, mas a gente não sabe disso então geralmente não vai ou vai na polícia e eles muitas vezes não sabem encaminhar essa vítima. Todas relatam muito descaso. As pessoas querem julgar com a cabeça delas se aquilo foi estupro ou não. A falta de empatia é um denominador comum no atendimento às vítimas”- Sheylli Caleffi, vítima de estupro.
É justamente este desconhecimento e os problemas no atendimento que o Ministério Público Federal tenta combater com uma campanha lançada para divulgar a lei, batizada pela campanha de Lei do Minuto Seguinte. O nome faz alusão à importância do atendimento feito logo após a agressão para que sejam ministrados os medicamentos necessários para prevenção de doenças e gravidez.
A campanha também receberá denúncias que ajudarão a identificar quais locais não estão fazendo o atendimento previsto na lei.
“Nós temos algumas dezenas de centros de referência de atendimento no estado de São Paulo e nesses locais as vítimas são atendidas de acordo com o protocolo do Ministério da Saúde e tem esse atendimento humanizado integral, mas nas demais unidades de saúde que não são serviço de referência essa dificuldade existe”, disse Pedro Machado, Procurador da República.
Um relato dado ao G1 de uma vítima estuprada por dois homens à mão armada em São Paulo reflete como é comum o problema do atendimento. Sarah* procurou uma UBS após sofrer a agressão. Passou pela triagem com um enfermeiro que não sabia qual procedimento tomar diante de uma vítima de estupro.
Ela conseguiu aguardar até que a responsável pela UBS a atendesse e iniciasse o procedimento, que envolveu a profilaxia com remédio anti-HIV e até mesmo uma notificação para a polícia. O atendimento só melhorou no SAE Fidélis Ribeiro para onde ela foi encaminhada.
“No primeiro dia lá, passei por um acolhimento e depois com a ginecologista. Depois disso, passei a ser atendida por uma psicóloga que me encaminhou para uma psiquiatra também”, conta.
“Acredito que deveriam ter locais específicos para mulheres que sofrem tamanha violência com profissionais treinados. Além da violência, a vítima sofre com problemas psicológicos e com os efeitos colaterais dos remédios. Médicos com mais empatia fazem muita falta”, Sarah*- vítima de estupro
A importância da lei
Para Caleffi, o atendimento pode influenciar também na maneira como a vítima vai se recuperar do trauma: “Se você é atendido e bem atendido, o seu trauma reduz muito. A qualidade deste atendimento de quem te receber vai ser determinante para o quão rápido você vai melhorar”, avalia.
Apesar de ainda existirem dificuldades e falta de conhecimento em relação à lei, a existência dela é considerada imprescindível.
Pedro Machado, um dos responsáveis pela campanha do MPF, acredita que a importância da lei está no alto número de casos de estupro no Brasil. Segundo dados divulgados pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSBP), em 2017 foram 60 mil casos notificados, mas a estimativa é de que os números fiquem entre 300 mil a 500 mil a cada ano, já que a subnotificação é alta.
“A importância dessa lei decorre da magnitude dos números. O Atlas da Violência indica que há uma subnotificação de 90%. Se isso representar 10%, você chega a uma cifra assustadora de uma pessoa violentada por minuto no Brasil”, diz Machado.
“É um dado preocupante e se você não tiver uma política pública adequada de atendimento destas vítimas, de minorar os efeitos desta violência, além de trazer um prejuízo muito grande para as próprias vítimas, isso traz um impacto orçamentário negativo para o sistema de saúde também significativo”, ressalta Machado.
O G1 perguntou ao Ministério da Saúde quantos atendimentos de vítimas de estupro são feitos anualmente no Brasil, já que a notificação por parte dos serviços de saúde é obrigatória, mas não obteve resposta.
“Se você é estuprada e tem atendimento médico, já é um horror. Já é uma coisa que você vai ter que lidar a sua vida inteira. Se você não tiver atendimento, você está destruindo uma parcela muito grande da população. Você destrói elas, os filhos delas, os maridos delas, porque não tem como levar uma vida saudável vivendo isso. Então a lei é para mitigar, reduzir, esse dano que já é gigante”, diz Caleffi.
Como ajudar uma vítima de estupro:
- Não pergunte como aconteceu ou o que ela vestia.
- Ofereça ajuda para tarefas simples do dia a dia, como limpar a casa ou preparar comida. A vítima de estupro enfrenta efeito colaterais dos remédios e também lida com o trauma; tarefas simples podem parecer complexas para lidar.
- Pergunte: Em que eu posso ser útil para você?
- Esteja disponível para ouvir o que a pessoa tem a dizer ou apenas fazer companhia.
“Cada pessoa possui a capacidade de salvar uma mulher vítima de estupro. Como? Acolhendo bem, sem julgamento. A rede de apoio e acolhimento é o que ela mais precisa depois da profilaxia”, diz Dskeunecke, da rede de jurista DeFEMde.
* O nome da vítima foi alterado para preservar sua identidade
Por Tatiana Coelho/G1