(O Globo, 29/03/2016) Clássico do movimento e pesquisa sobre periódicos para mulheres ganham edições
Muito antes de as mulheres ganharem as ruas e as redes, elas ocuparam as páginas de jornais e revistas em sua luta pela igualdade de gênero. Considerado o documento fundador do feminismo, “Reivindicação dos direitos da mulher”, escrito pela crítica literária e tradutora inglesa Mary Wollstonecraft, foi publicado em 1792 e ganha agora uma nova edição crítica no Brasil pela Boitempo. A obra exerceu forte influência no nascimento do movimento feminista brasileiro. Ao longo do século XIX, surgiram pelo menos 143 publicações no país voltadas para mulheres, de acordo com um levantamento feito por Constância Lima Duarte, professora da Faculdade de Letras da UFMG, que lança também agora o dicionário ilustrado “Imprensa feminina e feminista no Brasil — Século XIX” (Autêntica).
A principal bandeira de Mary Wollstonecraft, encampada pelas brasileiras, foi o direito à educação. Na época, as mulheres eram preparadas apenas para tarefas do lar. A trajetória pessoal da ativista inglesa explica seu interesse pelo tema. Mary deixou a casa do pai aos 19 anos e passou a se sustentar como acompanhante de uma viúva. Em 1774, junto com a irmã Eliza, fundou uma escola numa comunidade ao norte de Londres onde havia forte presença de dissidentes políticos e religiosos. É essa experiência que leva Mary a escrever seu primeiro panfleto sobre a a educação das mulheres.
— Ela trilhou um dos poucos caminhos possíveis a uma mulher de sua época para conseguir espaço como intelectual. Teve formação incipiente e, depois, educou-se de modo autodidata — conta Ivania Motta, tradutora da obra e autora de uma dissertação de mestrado sobre a ativista. — Seus textos foram escritos num período peculiar na Inglaterra em relação à produção de obras teóricas e discussões políticas. Em plena Revolução Industrial e sob o impacto tremendo da Revolução Francesa, desenvolveu-se o mais intenso e polêmico debate ideológico jamais havido sobre o caráter e a natureza das instituições políticas.
A partir de 1788, Mary começou a colaborar com a recém-lançada revista “Analytical Review”. É esta publicação que lhe dá acesso à vanguarda artística e intelectual da Inglaterra, incluindo Thomas Payne, William Blake e Henry Fuseli. Nos anos seguintes, ela mantém vários relacionamentos amorosos — indo contra a moral sexista e conservadora da época — e chega a viajar para a França para acompanhar de perto os desdobramentos da revolução no país.
— Quando publicou “Reivindicação dos direitos da mulher”, ela já era conhecida pela obra que escrevera em defesa de (Richard) Price e da Revolução Francesa, um marco de sua passagem de autora sobre educação de moças e crianças, campo essencialmente feminino e doméstico, para pensadora do debate político, reduto eminentemente público e masculino. Wollstonecraft não foi a primeira mulher a escrever sobre os direitos das mulheres. Mas foi quem usou o tom certo no momento propício — diz Ivania.
O DESEMBARQUE DAS IDEIAS POR AQUI
A autora que viveu uma vida completamente fora dos padrões de seu tempo teve um fim trágico. Em 1796, aos 38 anos, Mary morreu no parto da sua segunda filha, fruto do relacionamento com o jornalista e filósofo inglês William Godwin. A menina, batizada Mary Wollstonecraft Godwin, ficaria famosa décadas mais tarde sob o nome de Mary Shelley, a autora de “Frankenstein”.
As ideias feministas vocalizadas pela crítica inglesa desembarcaram por aqui nas primeiras décadas do século XIX. A primeira publicação dedicada às mulheres é “O espelho diamantino”, criada pelo jornalista francês Pierre Plancher em 1827, no mesmo ano em que a Coroa autoriza a abertura de escolas para meninas nas cidades mais populosas do país. Em editorial publicado no primeiro número, Plancher faz uma defesa enfática da educação das mulheres.
— Se em 1827 temos um jornal feito por um homem para mulheres, em 1831 já há mulheres fazendo jornais. Rapidamente, as primeiras escritoras começaram a escrever para outras mulheres — conta Constância Lima Duarte, professora da UFMG.
Uma dessas escritoras era Dionísia Pinto Lisboa, conhecida como Nísia Floresta. Nascida no Rio Grande do Norte numa família rica, ela teve a oportunidade de estudar e viajou com frequência à França, onde travou contato com as ideias de liberdade e igualdade que circulavam no continente. Em 1832, publicou aqui o que considerava uma tradução livre do clássico de Mary Wollstonecraft, trazendo o feminismo para o debate público brasileiro. No século XIX, o perfil de Nísia era comum às outras escritoras, diz Constância.
— No primeiro censo brasileiro, de 1872, 84% da população era analfabeta. Apenas uma minoria, a elite da elite, lia e escrevia. A classe média só começaria a ter acesso à educação no século XX. Houve uma campanha de alfabetização, mas as meninas foram as últimas a entrar na escola. Os próprios pais eram relutantes em permitir que fossem informadas e educadas para pensar pensar por si — argumenta a professora.
Ao pesquisar as primeiras escritoras brasileiras, Constância se deparou com os jornais em que elas publicavam. Para ela, esses periódicos são “páginas da história da mulher brasileira”. Foi a partir daí que ela decidiu fazer o levantamento, chegando às 143 publicações listadas no dicionário recém-lançado. A professora revirou arquivos de norte a sul do Brasil. E acredita que o número de jornais e revistas que circularam no século XIX foi ainda maior, pois é possível que muitos tenham desaparecido sem deixar registros. No livro, cada publicação conta com um verbete e a indicação do arquivo onde pode ser encontrada. Algo de extrema valia para pesquisas futuras.
DEVERES E DIREITOS
A professora dividiu os periódicos em dois grupos: os femininos e os feministas. Os primeiros abordavam os deveres das mulheres, como suas obrigações com o lar. Já os segundos reivindicavam direitos. No entanto, as fronteiras entre ambos eram tênues e se cruzaram nas páginas do mesmo jornal.
— Não privilegiei os (jornais e revistas) feministas porque a história da mulher é tudo isso junto e misturado. A história do feminismo não andou numa só direção, teve idas e vindas, avanços e recuos. Às vezes, na mesma página de um jornal, havia um artigo extremamente de vanguarda, falando das conquistas da mulher na Europa e nos EUA, e outro que reitera a passividade, o comodismo. Houve mulheres extremamente conservadoras e homens feministas — defende.
Constância observou um crescimento das publicações feministas nas décadas de 1860, 1870 e 1880. Um movimento que segue a própria luta das mulheres pelo direito à escolarização.
— Primeiro vem a luta pela escola primária, 20 anos depois, passa-se a pleitear o ensino secundário e depois a universidade. Em 1879, o imperador abriu o ensino superior para mulheres. São os ares europeus chegando ao Brasil — aponta a professora, que agora trabalha num dicionário de periódicos femininos e feministas do século XX. — É comum pensarem que a luta começou nos anos 1970, mas é bem mais antiga. Agora, por que essa luta desapareceu por tanto tempo? Houve resistência ao feminismo e isso é visível na imprensa do século XX, onde predomina preconceito e há a cristalização da imagem negativa da feminista.
Leonardo Cazes
Acesse o PDF: Livros recuperam a história do feminismo na Europa e no Brasil (O Globo, 29/03/2016)