“Direitos humanos não são uma temática fácil de lidar e não têm tanta visibilidade política”, afirma Maria Nazareth Cupertino, que tomou posse do cargo hoje (19)
(Rede Brasil Atual, 19/09/2016 – acesse no site de origem)
Os meios de comunicação estão na contramão do avanço dos direitos humanos ao reforçar estereótipos e preconceitos sobre o tema. A observação é da assistente social Maria Nazareth Cupertino, que assumiu hoje (19) a presidência do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe).
“Direitos humanos não são uma temática fácil de lidar e não têm tanta visibilidade política. É uma área que deveria ser prioritária, mas que é renegada. Tem muitos mitos em torno dos direitos humanos, um equivocado senso comum, muita utilização inadequada por parte da imprensa”, diz Nazareth. “Existe um histórico de perseguição dos defensores de direitos humanos e nos preocupamos sobre como garantir nossa segurança porque estamos mexendo com coisas muito grandes, como tortura, grupos de extermínio e crimes de homofobia cometidos pelo estado.”
O conselho funciona dentro da Secretaria Estadual de Justiça, mas é um órgão autônomo, com a função de encaminhar denuncias de violações de direitos praticadas em órgãos do governo estadual ou por servidores estaduais, como nas penitenciárias, nas comunidades terapêuticas ou por membros da Polícia Militar.
O Condepe tem 11 membros efetivos e seus respectivos suplentes, sendo seis representantes da sociedade civil indicados por entidades de defesa dos direitos humanos, um representante do poder Executivo, um do Legislativo, um do Judiciário e dois advogados da Organização dos Advogados do Brasil (OAB), além de dois membros não efetivos do Ministério Público e da Defensoria Pública.
A nova presidenta, eleita pelos demais conselheiros para os próximos dois anos de gestão, recebeu a reportagem da RBA ao lado do novo vice-presidente, Luiz Carlos dos Santos. Ambos criticaram o avanço conservador no estado e o descaso do governo de Geraldo Alckmin com a área em que atuam. Ela trabalhou na associação Rede Rua, com atendimento à população em situação de rua. E Santos trabalha em um projeto de proteção de direitos humanos em Cotia, na grande São Paulo, chamado espaço Malheiros. Confira a entrevista.
Qual a função do Condepe?
É fazer o diagnostico de violação de direitos humanos em todo o estado de São Paulo. Acolhemos as denúncias, encaminhamos para os órgãos responsáveis e vamos monitorando o processo de denúncia até que ele chegue a alguma conclusão. O conselho tem também a atribuição de fiscalizar órgãos estaduais de atendimento à população, tendo ou não denúncias de violações de direitos.
Como o Condepe está organizado?
Todos os conselhos de politicas públicas trabalham na linha da paridade, com metade de representantes do governo e metade da sociedade civil. No Condepe, no entanto, a maioria da direção é sempre da sociedade civil, o que para a gente é muito interessante porque a sociedade civil de certa forma esta isenta de interesses políticos e partidários.
Todos esses conselheiros se reúnem mensalmente para discutir uma pauta conjunta. Temos também as comissões, com calendário próprio, criadas para dinamizar e atender à maior demanda. Temos comissões de violência policial e letalidade; situação da população de rua; direitos humanos, saúde mental e drogas; criança, adolescente e sistema de garantia de direitos; moradia e questões urbanas e meio ambiente; abolição da tortura e mecanismo estadual; trabalho informal; sistema prisional; e educação em direitos humanos, que vai começar agora. Estamos também estudando uma de direitos humanos no mundo do trabalho. São essas comissões que dão vitalidade ao conselho e que trazem a pauta para o pleno.
Fora a dinâmica das comissões, temos as denúncias atendidas aqui, que viram um processo acompanhado pelo Condepe. Essas denúncias são distribuídas entre os conselheiros e cada um vai buscando estratégias para atendê-las.
Com que estrutura?
Temos uma secretária-executiva que permanece aqui o tempo todo. O Luiz e eu nos dividimos para que sempre haja um conselheiro aqui. O órgão é composto por membros do governo estadual, da sociedade civil, representantes da OAB (Organização dos Advogados do Brasil), membros do Tribunal de Justiça e dois que não são conselheiros efetivos, mas que acompanham o Condepe, que são integrantes do Ministério Público e da Defensoria Pública.
Qual a relação com o governo do estado?
Apesar de o responsável pela nossa estrutura ser o governo estadual, o conselho tem autonomia. Não estamos vinculados e não devemos satisfação ao governo do estado. Ele não tem interferência nenhuma nas decisões do Condepe, que é um órgão autônomo, do ponto de vista estrutural. O governo tem de investir no conselho, mas não manda nada nas ações internas.
Por que o órgão é importante?
É importantíssimo não só do ponto de vista de quem é conselheiro, mas de quem já acessou para tratar das próprias violações. É um espaço que por ter autonomia dá segurança para a população. Estamos sofrendo violações de direitos humanos e quando a gente recorre a um órgão há sempre um corporativismo: se eu fizer uma denúncia em um órgão policial, você terá uma avaliação daquela categoria de profissionais. Se eu for denunciar algo do sistema penitenciário, vai ser visto do ponto de vista de quem atua ali. O Condepe está fora dessa estrutura e vai analisar os dois lados. Por isso para a gente é muito importante fazer a escuta, tanto dos denunciantes quanto dos equipamentos. É uma escuta que não está ligada a quem atende e a quem executa a política e isso dá segurança. Muitas pessoas nos perguntam: “O que eu falar aqui a polícia vai ficar sabendo?” Não! É importante também porque a gente está cada vez mais com os canais de defesa dos direitos humanos reduzidos, monitorados ou infiltrados.
Como as denúncias chegam até o Condepe?
A base de representação do Condepe é formada por pelo menos 110 entidades que trabalham com direitos humanos. Muitas delas têm seus trabalhos nos bairros e são um dos canais para as denúncias de violações chegarem até o Condepe. Outras vezes as pessoas vêm até aqui pessoalmente e outras vezes as denúncias chegam por canais oficiais, como o Disque 180. Além disso, acompanhamos material de imprensa para compor casos, por exemplo, de violência policial. Então são diversas formas: telefone, e-mail, pessoalmente, pela imprensa e pelas entidades.
As pessoas denunciam violações individuais e trazem denuncias de grupos. As comunidades vêm e outras vezes vamos até elas, fazer reuniões nos bairros. Existem casos de a Polícia Militar estar infiltrada, fazer abordagens sistematicamente, por exemplo. Os grupos de população de rua vêm por meio de movimentos sociais ou individualmente. Muitas vezes conseguimos analisar e formamos grupos de denúncias afins.
E depois que recebem as denúncias?
Temos um canal de análise para ver se é de fato uma violação de direitos humanos e aí encaminhamos para uma comissão específica. Se for uma denúncia muito genérica, o Condepe já dispara um oficio para o órgão corregedor ou para a administração do estado. Nas prefeituras se chega reclamação orientamos o órgão local, como ouvidorias, para que elas apurem, já que o Condepe atua só em violações praticas por órgãos do governo estadual. Toda denúncia que chega a gente analisa e encaminha.
Quais as principais conquistas do Condepe nos últimos anos?
Conselho tem 25 anos de formação. Nesse período, uma das conquistas é conseguir monitorar de alguma forma a ação policial. A distribuição das denuncias e processos em comissão também é um avanço, que fez com que a gente atingisse o maior numero de demandas e de possibilidades. Isso criou na população a percepção que o Condepe é para além do que o senso comum tenta impor que a gente é a favor só de quem comete crimes – que também tem direito a defesa e a justiça. Conseguimos fazer com que a pessoa entenda a amplitude dos direitos humanos, mostrando que acontecem diversas violações, como consequência de muitas outras.
Outra conquista é a Ouvidoria Autônoma da Polícia Militar. É o Condepe que faz todo o processo, do edital a indicação, para se chegar a três nomes para ouvidor de polícia. Dos três, cabe ao governador escolher um, mas sabemos que os três dariam conta. Temos a garantia que os três passaram pela seleção do Condepe, mantendo o mínimo de regulação externa.
O Via Rápida também é uma conquista. Trata-se de um um termo de cooperação junto ao Ministério Publico que foi fechado há mais de um ano, assinado junto ao procurador-geral do estado, que garante facilidade para a autoridade começar a apurar. Por exemplo: quando acontece uma morte por policiais do estado, o Via Rápida absorve as informações e manda para a Procuradoria Regional de Justiça, que vai designar de imediato um procurador público. Se um caso ocorrer no interior ou no litoral, em vez de a informação do inquérito demorar 60 ou 90 dias para chegar, com o Via Rápida em dois, três dias elas já estão na mão do promotor do júri. Familiares e testemunhas não precisam passar seus dados.
Como é a estrutura física e de equipamentos do órgão?
A gente tem uma estrutura precária. Temos uma secretária-executiva, que é indicação nossa porque é um cargo de confiança. Ela que encaminha trabalhos, porque permanece aqui o dia todo. Os conselheiros não conseguem porque não somos remunerados e desempenhamos outras atividades. Temos também uma servidora. São então dois profissionais para uma demanda estadual. Temos duas salas de trabalho e uma outra disponibilizada para reuniões. Para fazer as viagens, a gente tem um carro, mas todas as outras despesas são por conta do conselheiro. Tudo é por nossa conta. A gente não tem verba destinada ao Condepe que o conselho possa administrar. Isso dificulta muito porque de certa forma engessa o conselho e ele fica muito voltado para a capital, que é onde estamos sediados. Os conselheiros de fora não têm subsidio para vir para cá para as reuniões.
Nossa preocupação é que temos uma responsabilidade com o interior, somos poucos e temos outras atividades e nenhuma estrutura para chegar lá. Por isso estamos criando uma estratégia de descentralizar ações. Em Ribeirão Preto, teremos uma organização responsável por estudar a demanda da região. Estamos formando um colegiado que podem monitorar. A ideia é que a gente crie observatórios e colegiados nos espaços onde a gente não consegue chegar.
Essa estrutura está em pé de igualdade com a de outros conselhos estaduais?
Não. Os conselhos de Políticas Públicas e da Assistência Social, por exemplo, têm outra organização, estão vinculados a outras secretarias, têm algumas verbas que vem de outras fontes e têm verba para controle social. O Conselho de Políticas Públicas tem estrutura melhor e orçamento maior para demanda. O de Direitos Humanos fica com estrutura reduzida em comparação com os outros.
Há sinalização de ampliar essa estrutura?
Não. Na verdade tivemos cortes de orçamento em todos os espaços. Aqui a gente estava negociando até pouco tempo atrás porque queriam rever a utilização do carro e dissemos não. Participamos da organização da Conferência Estadual de Direitos Humanos e por falta de recurso quase que ela não acontece. Brigamos e na última hora aconteceu de forma muito precária, ruim na discussão do conteúdo.
Direitos humanos não são uma temática fácil de lidar e não têm tanta visibilidade política. É uma área que deveria ser prioritária, mas que é renegada. Tem muitos mitos em tono dos direitos humanos, muito senso comum, muita utilização inadequada pela imprensa. O que o nosso povo assiste na TV é a contramão do que a gente trabalha aqui. Lidamos com uma imprensa que defende a redução da maioridade penal , a pena de morte, que acha que bandido bom é bandido morto… A pessoa só vai entender o que é o Condepe quando ela tem uma violação de direitos. Atendemos aqui casos de repercussão midiática e como foi difícil lidar com isso, com uma imprensa que trabalha o tempo todo contra a defesa dos direitos humanos, com o conservadorismo aumentando.
E do ponto de vista legal? O Condepe pode ter acesso livre, por exemplo, às penitenciárias do estado. Na prática isso ocorre?
Em geral não temos tido dificuldade. Fazemos o enfrentamento, às vezes é preciso ligar para um órgão estadual e esperar para ser atendido. Há alguma dificuldade nesse sentido. No sistema penitenciário é mais complicado de entrar e existem várias restrições. Por exemplo, não pode entrar com câmera fotográfica.
Quais as perspectivas para essa nova gestão?
Se conseguirmos resistir já é um bom caminho (risos). Infelizmente não temos perspectiva de grandes avanços. Estamos em um momento histórico no qual vemos um endurecimento muito grande em relação à defesa dos direitos humanos com pautas extremamente conservadoras e autoritárias. O pouco caso que se tem com o Condepe diz respeito às pautas que o conselho trata.
Por exemplo, a Secretaria de Justiça veio apenas nos comunicar que teríamos de mudar daqui. Não dá para discutir, é uma decisão tomada: vamos para o prédio onde estão os demais conselhos, na Rua Santa Ifigênia, mas temos outra leitura de porque esse espaço na secretaria é importante para nós. Lá não tem estrutura. O Conselho LGBT está lá há dias sem sistemas, não tem xerox. Há também questões de segurança. Estamos atendendo e de repente a polícia parece com livre acesso, sem comunicado.
O espaço de diálogo está fechado. A gente tem algumas expectativas que não são boas nesse momento. Temos trabalhado no sentido de fortalecer os conselheiros e o conselho. Outra coisa que tem nos preocupado é a nossa segurança. Existe um histórico de perseguição dos defender direitos humanos e temos e nos preocupamos sobre como garantir nossa segurança porque estamos mexendo com coisas muito grandes, como tortura, grupos de extermínio e crimes de homofonia cometidos pelo estado. O governo não quer discutir essas questões e que não vai à fundo nas nossas denuncias. Estamos bastante preocupados em como fazer uma estratégia que fiquemos menos vulneráveis nessa onde que está vindo.
Nossa luta é dar visibilidade para o que está acontecendo. Deliberamos, por exemplo, que vamos fazer uma audiência pública para tratar da repressão às manifestações, mas para organismos internacionais. A gente precisa fazer essa denúncia para fora e trazer quem está fora para dentro. Nunca tivemos, por exemplo, perseguição de adolescentes em manifestações, porque temos uma lei específica de proteção ao adolescente. Pretendemos publicar cada vez mais, fazer reuniões ampliadas, audiências públicas, chamar as pessoas para discutir e tornar a coisa o mais público possível. Outra linha é ajudar as pessoas a qualificar as denuncias com encontros em comunidades, porque a gente chega com a denuncia mas faltam várias informações.
Outra linha de trabalho será a comunicação, pensando estratégias de como enfrentar esse jornalismo que esta aí nas grandes mídias. Uma das ideias é ter uma assessoria de imprensa para externar nossa pauta. Uma assessoria que não seja do governo estadual, mas autônoma.
O Condepe teve poucas mulheres na presidência. O Luiz será o primeiro vice negro. O que isso representa para o conselho?
Por muito tempo o conselho era tocado por membros da Comissão Justiça e Paz, ligada ao setor da igreja católica mais alinhada com a Teologia da Libertação, um grupo muito bom. Agora estamos tornando o órgão mais aberto à outra organizações. Teve uma época que o Condepe era um grupo pequeno muito elitizado e ampliamos isso para um maior número de entidades.