Há um ano, a hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas moveu o Brasil. Quatro dias antes, este blog publicou o texto denúncia da figurinista Su Tonani: “José Mayer me assediou“. Depois de ter percorrido as instâncias institucionais da empresa onde trabalhava denunciando abusos e em busca de justiça, Tonani cansou de não ser ouvida. E decidiu falar publicamente sobre a violência que sofrera ao longo de 8 meses em seu ambiente de trabalho.
(Folha de S.Paulo, 09/04/2018 – acesse no site de origem)
Espontaneamente, as funcionárias da mesma empresa se articularam numa gigantesca e acolhedora retaguarda, iniciando o movimento #MexeuComUmaMexeuComTodas, que inundou a rede. O resultado foram quatro milhões de menções e o marco histórico desta ser maior hashtag no combate à violência contra a mulher nas redes sociais virtuais.
A partir daí, este blog passou a receber por inbox muitas denúncias de violência, agressão, alienação parental, assédio etc, mas não as publicou por duas razões: falta de estrutura para checagem; e a missão de incidir ou pautar nos debates da sociedade (nosso DNA nunca foi ser uma plataforma de escracho). Acreditamos que o escracho público é um ato extremo e nocivo, o último recurso quando a institucionalidade é claramente ineficiente.
Até que, em dezembro de 2017, já indo dormir, recebi um telefonema de uma mulher que eu não conhecia, fazendo uma denuncia que me tirou o sono. Diferentemente de todas as mulheres que nos procuram, Silvana Moura não era a vítima. E sim a figurinista-chefe da vítima de um suposto estupro – ainda em investigação – em um set de filmagem, pelo ator Thogun.
Conversamos pelo telefone e percebi: eu estava diante de uma mulher se responsabilizando por outra. Nada trivial no país da pichação “não fui eu”. Onde é preferível ignorar a ideia de responsabilidade coletiva, para seguir ignorando confortavelmente os passivos das nossas histórias familiares, da nossa sociedade – ao mesmo tempo que reagimos como leões acuados ante a discussão de taxação sobre herança. O Brasil é o país de baixo capital cívico, onde alta é desconfiança entre as pessoa conhecidas, desconhecidas ou da mesma equipe. E o desconhecimento da lei é proporcional ao seu descumprimento. A lei do trabalho diz que, quando um caso de violência ocorre no ambiente de trabalho, aquilo não diz respeito somente à vítima e ao agressor – é responsabilidade de todos os agentes da relação de trabalho, sobretudo dos superiores hierárquicos, os quais, à letra da Lei, quando agressores, ou seus cúmplices, são passíveis de enquadramento criminoso.
Silvana me fez um convite para mais uma quebra de silêncio e um escracho público. Mas embora o produtor americano Harvey Weinstein já tivesse caído, nós sabemos como as denúncias no Brasil acabam: com as vítimas sendo desacreditadas, humilhadas, retaliadas e perdendo seus empregos. A estrutura do machismo brasileiro é tão radical que, dificilmente conseguiríamos (conseguiremos), um efeito dominó como o que aconteceu internacionalmente.
É preciso mudar a estrutura. E qual ferramenta eu tenho? A mesma que tantas de nós: minha palavra e minhas redes – sociais virtuais e de afetos. Gravei um vídeo tosco, postei e envie para amigas e amigos produtores, com a seguinte provocação: vamos criar um pacto de responsabilidade anti-assédio no audiovisual.
Os produtores Rodrigo Teixeira, Beto Grauss, da Pródigo Filmes, e Renata Brandão, da Conspiração, acolheram a iniciativa imediatamente. Marcamos um encontro para janeiro. E, no primeiro dia do ano, as americanas lançaram o Time’s Up. Uma semana depois, no Golden Globe, atrizes e ativistas vestiram preto e Oprah Winfrey anunciou o fim da era do assédio.
No Brasil, essa hora também chegou – pelo menos no audiovisual independente. Não é uma canetada de política pública, capaz de mudar a vida de milhões de pessoas, mas é o primeiro passo concreto para mudarmos uma cultura dentro de um setor fundamental da economia criativa. E, se conseguirmos, a um tempo, nos mover e avançar, seremos exemplo. Essa realização foi possível graças aos esforços institucionais da APRO (Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais), com apoio do advogado Caio Mariano, e a força das incríveis Renata Brandão e Marianna Souza, entre tantas e tantos.
Daqui em diante, todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores do audiovisual independente decidimos que não vamos mais tapar os olhos. A CARTILHA-PACTO DE RESPONSABILIDADE ANTI-ASSÉDIO SEXUAL NO SETOR marca o começo de um novo tempo.
Antonia Pellegrino é editora deste blog, roteirista de cinema e tv, escritora e feminista.