(BuzzFeed Brasil, 17/08/2016) Todos nós conhecemos muito bem a clássica transformação de Hollywood. Uma linda atriz que devemos acreditar que é desleixada (porque seu cabelo está um pouco bagunçado) ganha uma chapinha e um pouco de maquiagem e então vira a rainha do baile.
Uma das transformações mais famosas é a do “Clube dos Cinco”, de John Hughes, filme responsável por lançar milhares de clichês que perduram até hoje. Allison, interpretada por Ally Sheedy, vai de uma inútil nojenta (na visão de Hollywood) para uma linda jovem com a ajuda da personagem de Molly Ringwald (quem mais poderia ser?). A esquisitona feiosa é curada ao se tornar bela aos olhos de adolescentes.
“Stranger Things”, série de ficção científica da Netflix, é uma grande homenagem aos filmes do gênero dos anos 80. E como reviver metáforas fazia parte dos planos, uma transformação clássica era inevitável.
Dirigido e escrito por Matt e Ross Duffer, “Stranger Things” acompanha os desdobramentos do sumiço do menino Will Byers, no Estado de Indiana (EUA), nos anos 80. Seus amigos — um grupo de nerds que adoram Dungeons & Dragons — tentam encontrá-lo com a ajuda de uma fugitiva de um experimento secreto do governo, que foi transformada em uma arma telecinética. O nome, assim como a idade aproximada da fugitiva, é Onze.
Interpretada pela muito talentosa Millie Bobby Brown, Onze tem os olhos arregalados e é desconexa, leal e valente. Seu cabelo é raspado, uma vez que os pesquisadores estavam sempre conectando e reconectando fios à sua cabeça. Sua transformação iminente, portanto, é diferente da fórmula básica garota-estranha-para-garota-bonita. Onze foi criada de uma maneira brutal e, presumivelmente, sem atenção ao gênero. Mas uma transformação é uma transformação.
O amigo de Will, Mike (Finn Wolfhard), em cujo porão Onze busca refúgio, ajuda a menina a colocar a maquiagem e as roupas de sua irmã mais velha, para que Onze possa visitar sua escola sem levantar suspeitas. O resultado final — ornamentado, feminino, rosa — faz Onze parecer uma versão em miniatura de Ally Sheedy.
Onze toca em sua nova peruca loira na frente de um espelho na casa de Mike. “Você está bonita”, diz Mike. “Bonita?”, pergunta ela, sem saber se acredita. É uma palavra que ela vai repetir algumas vezes ao longo da série — olhando para seu reflexo e vendo a forma como Mike olha para ela.
Enquanto Onze se esforça para compreender outras palavras que os meninos apresentam, “bonita” é uma que ela entende imediatamente e intimamente. Ela teve sua infância roubada, mas ter a beleza negada parece ter sido uma das maiores tristezas de sua curta vida.
Onze faz parte de um longo histórico de personagens mulheres cujo valor é determinado por seu apelo romântico para os meninos — ou seja, alguém que deve primeiro se tornar desejável antes que possa reivindicar plenamente algum mérito.
Essa premissa é ainda mais irritante em uma série onde Onze é (a) a heroína e (b) pré-adolescente. Por que ela precisa se preocupar em atrair garotos quando ela é, literalmente, uma criança — e uma preocupada em salvar as pessoas de um perigo mortal?
Mesmo que Onze não tenha escolhido ter seu cabelo raspado, “Stranger Things” presume que o ultrafeminino é o padrão, uma preferência natural e óbvia das meninas. A cultura pop nos diz que a forma masculina em uma menina é estranho, anormal, feio e ruim (ou seja, gay). A feminilidade é vista como uma cura para tudo: a garota bonita é a garota desejada pelos homens. E, em 2016, como nos anos 80, as personagens ainda devem cumprir essa expectativa.
Garotas masculinizadas continuam sendo raras no cinema e na TV. E, quando elas aparecem, seu estilo é um problema a ser corrigido. Às vezes, a masculinidade da menina é meramente temporária, uma fantasia com prazo de validade — como com Andrea, interpretada por Alana Austin, no filme da Disney “Motocrossed”.
Andrea se veste como seu irmão gêmeo para poder competir como ele. Mas, tal como acontece com Amanda Bynes em “Ela é o Cara”, a garota de “Motocrossed” acaba com um namorado no final.
Em outros casos, a masculinidade em personagens mulheres é atribuída à sua esportividade. Então, os filmes trabalham duro para assegurar que — não se preocupe! —mesmo que a menina seja resistente e forte, ela ainda é bonita e desejada pelos meninos.
Em “Driblando o Destino”, de 2002, a personagem Jules (Keira Knightley) é uma jogadora de futebol de cabelos curtos que está constantemente sob suspeita de ser lésbica. Jules nega constantemente “as acusações”, e isso se torna uma das piadas do filme.
Apesar de Jules ter uma quantidade absurda de química com sua melhor amiga e companheira de equipe, Jess (Parminder Nagra), os telespectadores são constantemente lembrados da heterossexualidade de Jules, especialmente quando ambas, Jules e Jess, incompreensivelmente se apaixonam por seu treinador.
Por fim, há as personagens retratadas como se fossem garotos, um mano entre manos. Em outro filme dos anos 80 escrito por John Hughes, “Alguém Muito Especial”, Mary Stuart Masterson é Watts, adolescente da classe operária e melhor amiga de Keith (Eric Stoltz).
Watts ajuda Keith a tentar conquistar uma menina popular da escola, como um bom amigo faria, mas, no final, Keith percebe que está, na verdade, apaixonado por sua melhor amiga. E ele expressa seu sentimento dando a Watts um par de brincos que originalmente estavam destinados à garota que ele paquerava. Watts fica emocionada. Que maria-rapaz, afinal, não deseja um par de brincos?
Se a masculinidade de uma menina não pode ser corrigida, então ela é uma causa perdida: alvo de piadas, na melhor das hipóteses, ou uma monstruosidade, na pior.
A homossexualidade foi repetidamente demonizada ao longo da história do cinema. A homossexualidade monstruosa aparece tanto em filmes ganhadores do Oscar, como “O Silêncio dos Inocentes” e “Monster – Desejo Assassino” , quanto nos de terror b dos anos 80. A homossexualidade é tratada como uma ameaça à heteronormatividade tal como Drácula: algo que ameaça, seduz e transforma suas vítimas — por meio da troca de fluidos corporais — tão vilões quanto ele.
Onze, de “Stranger Things”, não é uma ameaça tal como os vilões clássicos de filmes de terror são, mas, o que importa, é que ela se vê dessa maneira.
Quando os pesquisadores forçam os limites de sua telecinese, ela involuntariamente cria uma ruptura no espaço-tempo, abrindo uma porta para uma dimensão alternativa (o “Mundo Invertido”) e soltando um monstro no mundo real.
Conforme os dias passam e Will Byers continua desaparecido, Onze é devastada pela culpa. “Eu sou o monstro”, diz a Mike, com lágrimas nos olhos. Sua monstruosidade, ela sente, também se revela visualmente, por sua cabeça raspada. Em uma cena, depois de fugir de Mike e seus amigos, preocupada que poderia machucá-los ou piorar a situação, ela se inclina sobre uma lagoa na floresta e grita para o próprio reflexo. Se ao menos ela fosse normal. Se ao menos ela fosse bonita.
“Stranger Things”, que faz referência ao trabalho de diretores como Steven Spielberg e John Carpenter, não só retoma a estética dos filmes dos anos 80, como também recupera uma política de gênero ultrapassada.
Onze é definida quase que exclusivamente por seus relacionamentos com homens: o horroroso médico que ela chama de “Papa”; os nerds que primeiro a rejeitam e depois a acolhem; e, mais significativamente, seu amigo Mike, que, depois de vê-la adequadamente afeminada, a beija e a convida para um baile da escola.
Mesmo que Mike ainda goste de Onze sem a peruca, que ela felizmente abandona, a transformação permite que Mike veja Onze como alguém capaz de se feminilizar (e vale lembrar que essas crianças estão na sexta série, são quase bebês). O heroísmo de Onze — e, em última análise, seu potencial de martírio — fica então ofuscado ao tornar a personagem parte de um romance frustrado.
No conjunto, “Stranger Things” faz questão de impedir quaisquer vestígios de homossexualidade em seus personagens. Valentões chamam Will, seu irmão e seus amigos de “bichas anormais”, mas o insulto é, em grande parte, vazio.
Mike tem seu par em Onze. O irmão de Will, Jonathan (Charlie Heaton), depois de tirar escondido fotos da irmã mais velha de Mike, Nancy, enquanto ela se despe perto de uma janela, torna-se confidente e amigo da garota. A nerdice hétero solitária é romantizada neste mundo — vista como algo menos vergonhoso do que a homossexualidade.
“Stranger Things” defende os nerds e os esquisitos, como já fez muitas obras da cultura pop dos anos 80. No entanto, ao colocar uma peruca em Onze e fazer de todos os personagens aparentemente heterossexuais, os roteiristas asseguraram que a estranheza dos personagens não saísse do controle. Ser homossexual e não se conformar com padrões de gênero (ou cor) — em um mundo com monstros e dimensões alternativas — poderia ser demais.
Nem todo personagem precisa ser LGBT (ainda que isso fosse bom). A questão não é apenas que não há personagens gays na maioria das séries adoradas e aclamadas pela crítica — o problema é que a maioria dos personagens não tem a oportunidade de ser outra coisa senão hétero.
Até mesmo personagens que têm permissão para ser abertamente gays são femininas: Emily e seus vários interesses amorosos em “Pretty Little Liars”; Clarke de “The 100”; basicamente todas de “The L Word” (Shane é meio que uma exceção, e ela usa uma tonelada de maquiagem). Lea DeLaria, como Boo em “Orange Is The New Black”, é uma das únicas verdadeiras sapatões na televisão hoje.
Se uma personagem feminina vai gostar de mulheres, ela, pelo menos, tem que “parecer hétero” para que sua homossexualidade não seja uma aberração tão grande. Quando os personagens para os quais deveríamos torcer pisam fora dos limites da heteronormatividade, logo eles são colocados de volta em seu lugar.
Mas Onze é uma criança. Nós não sabemos sua orientação sexual e não precisamos saber. No entanto, os irmãos Duffer sentiram a necessidade de lhe dar uma transformação e de colocá-la como par romântico de um menino. (Ela poderia crescer e ficar com meninos e meninas, é claro, ou com absolutamente ninguém, mas em nossa cultura se presume que as meninas são hétero, a menos que se prove o contrário; nesse caso, elas são menosprezadas e desacreditadas.)
Não importa sua orientação, Onze simplesmente não merece ser reduzida a uma trama romântica. Mesmo que Winona Ryder tenha feito um retorno triunfante como a mãe de Will, mesmo que Nancy (Natalia Dyer) possa disparar uma arma muito bem e mesmo que #WeAreAllBarb, “Stranger Things” reflete o universo de um menino. E, de acordo com as leis da cultura pop, os meninos ainda têm que completar sua missão heroica e conquistar a garota.
Outro grande sucesso do momento, “Caça-Fantasmas”, de Paul Feig, foi celebrado precisamente porque as personagens femininas não podem ser vencidas. Elas existem por direito próprio, como salvadoras do mundo, em vez de prêmios para o consumo dos protagonistas masculinos. É algo emocionante, principalmente porque as mulheres merecem ser as heroínas de suas próprias histórias.
No entanto, manter todas as personagens femininas sem compromisso também significa que “Caça-Fantasmas” não tenta impor a heteronormatividade. Erin (Kristen Wiig) flerta sem muito jeito com Kevin (Chris Hemsworth), mas Abby (Melissa McCarthy) está muito mais preocupada em sua amizade com Erin (e caçar fantasmas) do que expressar interesse romântico por alguém. Enquanto isso, Holtzmann (Kate McKinnon) seduz tudo que se mexe (e de uma forma que não se limita ao olhar masculino).
Pergunte a qualquer lésbica e ela lhe dirá que a personagem de McKinnon é tão obviamente homossexual que ela saiu da sessão de cinema de “Caça-Fantasmas” ainda mais gay do que quando entrou. Feig e McKinnon, não confirmam a sexualidade de Holtzmann, provavelmente devido à pressão do estúdio, o que é irritante. Mas, pelo menos, Holtzmann — que está longe de ser a pessoa mais feminina do mundo, com suas gravatas e macacões — não é punida por sua masculinidade ou fica com um cara aleatório.
A ascensão de Holtzmann vem um ano após outra forte personagem: Furiosa, de Charlize Theron, em “Mad Max: Estrada da Fúria”. Depois que Millie Bobby Brown, a atriz que interpreta Onze, raspou a cabeça para seu papel, ela ficou preocupada que tivesse cometido um grande erro — até que os irmãos Duffer lhe mostraram uma foto de Furiosa com o mesmo corte. “A semelhança era incrível!”, disse Brown ao IndieWire. “Foi a melhor decisão que eu já tomei.”
Quanto mais vemos mulheres e meninas acolhendo representações não convencionais de gênero, menos difamadas essas representações se tornarão. Personagens como Furiosa e Holtzmann representam a possibilidade de que uma mulher pode ser masculina, ou gay, ou solteira, ou uma combinação dos três, sem que seja feminilizada à força, ganhe um namorado ou seja vista como um monstro.
“Stranger Things” poderia ter permitido que Onze forjasse amizades significativas e acabasse com monstros sem se preocupar com sua beleza. Algumas metáforas dos anos 80 realmente não valem a pena reviver — e a clássica transformação é uma delas.
Shannon Keating
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