‘Mulher que faz sucesso é entendida como perigosa’, diz Anna Muylaert

10 de setembro, 2015

(G1, 10/09/2015) Ao G1, diretora de ‘Que horas ela volta?’ fala sobre repercussão do filme. ‘Ganhei prêmios, mas ninguém tem oferta de trabalho a me fazer’, declara.

Esse é o ano de Anna Muylaert. Diretora de “Durval discos” (2002), grande vencedor no Festival de Gramado, e “É proibido fumar” (2009), melhor filme e roteiro em Brasília, a paulistana de 51 anos está internacionalmente conhecida por sua obra mais recente, “Que horas ela volta?”, que estreou em 22 países.

A diretora Anna Muylaert (Foto: Divulgação/Casé Assessoria)

A diretora Anna Muylaert lança o filme ‘Que horas ela volta?’ (Foto: Divulgação/AlineArruda/Casé Assessoria)

O filme, com Regina Casé no papel da empregada doméstica Val, foi elogiado pela crítica do “NY Times”, “Le Figaro”, “El Pais” e “Guardian”. Recebeu prêmios no Festival de Berlim, na Alemanha, e de Sundance, nos EUA. Nesta quinta (10), o longa pode ser escolhido pelo Ministério da Cultura como representante do Brasil no Oscar 2016.

“Apesar de tudo isso, parece que ninguém tem uma oferta de trabalho a me fazer. Se eu fosse homem, acho que seria diferente, porque uma mulher que faz sucesso numa área dominada por homens ainda é entendida como uma figura que pode ser perigosa”, diz Anna, ao G1.

Em um debate sobre “Que horas ela volta?”, em Recife, Anna enfrentou um “show de machismo” protagonizado pelos diretores Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Sobre o episódio, ela conclui que as mulheres precisam aprender a ser um pouco mais agressivas. Leia abaixo a entrevista.

G1 – Você se inspirou em alguma história para fazer o filme? Quando surgiu a ideia?
Anna Muylaert –
 Comecei a escrever o roteiro há 20 anos, logo depois de ter meu primeiro filho. Eu, que sempre dei muita ênfase na carreira profissional, de repente percebi que o trabalho da mãe não era apenas o trabalho mais importante do mundo, era um trabalho sagrado. Ao mesmo tempo, atentei para o fato de que, no meu meio social, este era um trabalho desvalorizado, e que muitas mulheres preferiam entregar cotidianamente seus filhos aos cuidados de babás com baixos salários. E, muitas vezes, essas mulheres tinham que largar seus filhos para poder cuidar dos filhos dos outros. Percebi que na figura da babá estavam contidos grandes paradoxos da sociedade brasileira: paradoxos sociais, afetivos e culturais que circundavam todos em relação à questão da educação. Me inspirei na história de Edna, que foi babá de meu caçula anos atrás, e a personalidade de Val me inspirei na Dagmar, que trabalhou na casa de minha mãe quando eu era criança.

G1 – Por que escalar a Regina Casé como a Val?
Anna Muylaert –
 Porque sempre a considerei uma atriz estupenda, pela proximidade dela com o tema e pelo fato de eu achar que, numa única figura, ela tem as raças branca, preta e índia, as três raças principais do Brasil.

G1 – A Jéssica [interpretada por Camila Márdila] é tão protagonista do filme quanto a Val. Em quem você se inspirou para criar essa personagem?
Anna Muylaert – Não me inspirei em ninguém especificamente, mas quando percebi que Jéssica seria essa personalidade livre e rebelde decidi que ela seria pernambucana porque os sinto muito assim.

G1 – Você acha que o cinema brasileiro ainda falha em representar as mulheres?
Anna Muylaert –
 Acho que o cinema mundial tem a tendência de representar a mulher a partir de uma visão masculina, ou seja, sempre bela, magra, charmosa, dengosa, frágil etc. Mesmo em filmes super pop, onde o homem é rebelde ou criminoso, as mulheres nunca saem desses padrões descritos acima – e estes padrões não representam a maioria das mulheres.

Que horas ela volta? (Foto: Divulgação)

G1 – A PEC das domésticas foi regulamentada apenas em junho deste ano e seu filme critica o modo como os patrões tratam suas empregadas. Há uma mudança de comportamento?
Anna Muylaert – Não tenho dúvida. Os números provam. Há dez anos 20% das empregadas dormiam no serviço. Hoje apenas 2% dormem no serviço. Creio que isso não tem mais volta.  O que estava no escopo do escravagismo, está virando profissão. Todo mundo quer trabalhar e voltar pra casa. Todo mundo prefere viver a própria vida em vez de viver a vida do outro.

G1 –  O seu filme é bem otimista porque nem todas as domésticas conseguem a libertação da Val. Esse final foi pensado desde o começo ou houve muitas mudanças?
Anna Muylaert – Sim, comecei a escrever esse filme em 1996. O roteiro passou por várias mudanças ao longo destes 19 anos. A versão rodada foi escrita em julho de 2013, meses antes da filmagem. Eu tentei dar um final com esperança para a filha da empregada, mas não um final de novela onde ela ficaria rica como cantora famosa ou por um casamento com o patrão. Eu pensei muito para achar o final como ficou.

G1 – Você postou no Facebook a mensagem de uma fã do filme que se emocionou ao lembrar da babá. Como tem sido a reação do público?
Anna Muylaert – Tem sido uma alucinação!  Recebo mensagens praticamente a cada 10 minutos no Facebook ou outras redes sociais, todas muito emocionadas. Muitos me agradecem pelo filme e algumas contam histórias pessoais. Eu leio todas e respondo todas. Esse contato está sendo vibrante tanto para mim quanto para parte da equipe com quem compartilho tudo.

G1 – Você já ouviu alguma reação negativa sobre seu filme?
Anna Muylaert –
 Críticas escritas houve poucas negativas. Críticas políticas, de gente que não gosta do filme, eu estava esperando que acontecessem, mas não ouvi ainda. Mas ouvi relatos de reações de desaprovação a atitutes da Jéssica, tanto durante as sessões como depois, para as atrizes. E também ouvi dizer de duas mulheres que saíram do cinema na cena que SPOILER a Val entra na piscina. Sair do cinema quando a personagem está se libertando é um sinal de que elas estavam desaprovando essa evolução da personagem.

G1 – Você promoveu uma sessão do filme para empregadas domésticas.  Como foi a experiência?
Anna Muylaert – Foi bem interessante. A sessão aconteceu num domingo, no Belas Artes, no centro da cidade, que não é a região delas, e não foram mais que 70 pessoas. No entanto, quem estava ali, ficou muito emocionado e levantou questões importantes. Depois eu soube que um grupo saiu de lá e foi discutir questões, segundo me escreveram, que estavam presas há muito tempo. Muita coisa veio à tona depois da sessão porque o filme funciona como um espelho. O filme descontrói um jogo que todos nós estamos jogando, seja em que posição estivermos.

G1 – No exterior, o título do filme é ‘The second mother’ (‘a segunda mãe’). Por que essa tradução? Como os estrangeiros entendem a questão das domésticas no Brasil?
Anna Muylaert – O nosso agente de vendas internacional não gostava da tradução do ‘Que horas ela volta?’ literal para o inglês. Eu dei algumas ideias, dentre elas, ‘A porta da cozinha’, ‘A segunda mãe’, ‘Quase da família’, ele escolheu ‘A segunda mãe’. Quando o filme termina, os estrangeiros perguntam: mas isso existe mesmo ou é ficção? Daí eu digo que existe, mas que está mudando e eles ficam fazendo mil perguntas sobre o Brasil e sobre as mudanças recentes no país. Mas logo depois ampliam o debate para relações de poder de maneira geral, e isso existe em todas as sociedades, talvez não no Xingu.

G1 – Depois de Berlim e Sundance, qual seria a importância de seu filme ser escolhido para representar o Brasil no Oscar 2016?
Anna Muylaert –
 Todo ano o Brasil escolhe um filme para mandar pra comissão do Oscar. Tomara que seja o nosso este ano. Isso com certeza traria mais mídia para o filme e atrairia mais público para o cinema aqui no Brasil.

31/01 - A diretora Anna Muylaert e a atriz Camila Mardila recebem prêmio no Festival de Sundance. (Foto: Chris Pizzello/Invision/AP)

Em janeiro deste ano, a diretora Anna Muylaert e a atriz Camila Márdila foram premiadas no Festival de Sundance (Foto: Chris Pizzello/Invision/AP)

G1 – Se o seu filme for escolhido, você será a primeira mulher desde Suzana Amaral, em 1986, a representar o país lá fora. Por que as diretoras brasileiras não são reconhecidas?
Anna Muylaert – Nossa! Eu não tinha essa informação. Eu precisaria estudar essa lista de filmes brasileiros que tentaram vagas no Oscar e saber os concorrentes daquele ano para saber se as diretoras não foram reconhecidas ou se os filmes escolhidos foram realmente os mais apropriados. Quanto ao não reconhecimento em geral das diretoras, creio que toda a nossa sociedade é machista. E a direção é um cargo muito masculino porque é um cargo de comando. A sociedade machista se sente mais segura dando um cargo de comando para um menino sem experiência do que para uma mulher com experiência comprovada. Isso pode ser triste, mas é real.

Se um canal a cabo vai fazer uma nova série, ele vai chamar mulheres assistentes, diretoras de produção, montadoras etc, mas dificilmente vai escolher uma mulher para fazer direção geral. Quanto maior for o orçamento, mais difícil será escolherem uma mulher. Para dar um exemplo, eu estou no mercado há muito tempo, já provei minha competência e seriedade em diversos trabalhos tanto no cinema, quanto na televisão. Este ano ganhei prêmios importantes fora do país, no entanto nenhuma televisão me fez alguma oferta de trabalho. Apesar de tudo isso, parece que ninguém tem uma oferta de trabalho a me fazer… Se eu fosse homem, acho que seria diferente porque uma mulher que faz sucesso numa área dominada por homens ainda é entendida como uma figura que pode ser perigosa.

G1 – De ‘Durval Discos’ para hoje, como você enxerga seu amadurecimento?
Anna Muylaert – São quase 15 anos, né? Acho que evolui muito tanto como pessoa, como mãe, e também como diretora a partir da expêriencia acumulada com outros filmes e trabalhos. Mas também a chegada do digital no processo de filmagem – ‘Que horas ela volta?’ é o meu primeiro filme rodado em digital – permitiu uma ampliação enorme no meu contato e na minha experiência com os atores.

G1 – O seu filme tem uma mulher como protagonista e justamente o seu protagonismo como diretora bem-sucedida causou um debate atordoado com Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Como fazer para que os homens saibam ser coadjuvantes da história?
Anna Muylaert – Isso é um grande debate que estamos começando, né?  O machismo está aí há milênios. Ele não é um monstro, é um conjunto de regras vigente na nossa sociedade tanto para homens, quanto para mulheres. Até os anos 60, as mulheres estavam em casa lavando roupa e cuidando dos filhos. Não faz nem cem anos que começamos a ocupar espaço no mercado de trabalho. Acho que ainda temos um excesso de humildade e até de timidez, enquanto os homens têm um excesso de vaidade e gostam de fazer auto-propaganda. Ou seja, eles se sentem bem como protagonistas e nós estamos engatinhando para aprender a deixar de ser apenas coadjuvantes.

Mas atualmente, com as mulheres provando sua competência e conseguindo resultado em várias áreas profissionais, tanto nós mulheres temos que aprender a ocupar o espaço do sucesso quanto os homens têm que aprender a sair do centro do palco e deixar uma mulher brilhar, sem se sentir ameaçado ou inferiorizado. Acho que é um aprendizado mútuo. Mas com certeza se abrimos esse debate e se os homens perceberem o quanto nos humilham em pequenas atitudes diárias e nós mulheres começarmos a não aceitar essas humilhações, a coisa pode melhorar. De forma geral, acho que a mulher precisa aprender a ser um pouco mais agressiva e o homem precisa aprender a ser um pouco mais contido.

Letícia Mendes

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