(Correio Braziliense) A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 99/2011, de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO). A ideia é simples: entidades religiosas com representação nacional passariam a compor a lista de notáveis autorizada a interpelar o Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional.
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A tese de João Campos é que a alteração representaria uma “ampliação da cidadania”, pois entidades religiosas poderiam reclamar diretamente à Suprema Corte seus interesses; entre eles, estão o ensino religioso nas escolas públicas e a imunidade tributária. Por fim, o deputado justifica a criatividade de sua iniciativa como uma devida correção ao esquecimento da Constituição Federal de 1988, que não incluiu os grupos religiosos como entidades legítimas para provocar a Corte.
Meu primeiro impulso foi o de convocar colegas militantes em direitos humanos a fim de criarmos uma nova religião — a dos crentes na secularidade do Estado. Como somos muitos e em todos os cantos do país, teríamos representatividade nacional para interpelarmos a Suprema Corte em matéria constitucional, caso a PEC viesse a ser aprovada. Ao nosso lado, estariam a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil e o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil.
Se fosse preciso, formaríamos uma federação internacional ou, quem sabe, interplanetária, pois alguns colegas seculares são também crentes na vida em outras órbitas. Com essa saída, nos tranquilizaríamos sobre a ameaça à laicidade lançada por essa proposta de emenda constitucional. Nosso ordenamento jurídico não define o que seria um grupo religioso; por isso, bastaria que nos autodenominássemos como religiosos no estatuto de fundação, e não apenas como entidade da sociedade civil sem fins lucrativos. O tumulto processual no STF estaria deflagrado.
Mas essa é uma saída bem-humorada, senão cínica. O mais correto é enfrentar o absurdo da proposta com argumentos razoáveis para um Estado laico. A laicidade do Estado é o que garante a nossa rica diversidade. Há pleno espaço para as comunidades religiosas se expressarem e promoverem seus interesses na vida social. Elas podem gerir creches, escolas ou universidades; estão em hospitais, presídios e quartéis. Por que desejam agora estar na Suprema Corte?
O deputado João Campos foi transparente quanto às motivações da PEC: proteger seus cofres e seus rebanhos. Se há um equívoco na Constituição Federal de 1988, é ter mantido o ensino religioso como disciplina obrigatória, porém de matrícula facultativa, nas escolas públicas brasileiras. Religião é matéria de ética privada e jamais deveria ter ultrapassado os muros das escolas públicas. Esse, sim, foi um deslize da Constituinte.
Há ainda um longo trânsito da PEC nº 99/2011 no debate legislativo. Estou convencida de que a proposta não sobreviverá ao debate razoável sobre os sentidos da democracia. Assim como não há perseguição às religiões pelo Estado brasileiro, tampouco deve haver sua colonização por comunidades religiosas. A Suprema Corte deve ser um espaço livre de motivações e interesses particulares: os 11 ministros não representam suas crenças privadas, mas a ordem constitucional laica, por isso não precisamos temê-los.
O direito livre de ascender à Corte para questionar a constitucionalidade de atos do Estado provocaria uma fissura na estabilidade democrática, em particular na relação do Estado com as religiões. Por uma particularidade questionável da democracia representativa brasileira, temos partidos políticos religiosos, temos frentes parlamentares organizadas por matrizes também religiosas, além de organizações de juízes pela fé.
A PEC nº 99/2011 não será boa para ninguém — religiosos, não religiosos e Corte. A Constituição Federal de 1988 não ignorou as religiões. Minha hipótese bem-humorada de fundar uma nova religião é legalmente justa. Se fosse concretizada como forma de resistir à mudança constitucional, o passo seguinte seria um gesto autoritário do Estado brasileiro perante as comunidades religiosas: seria preciso definir critérios e regras para que um grupo se postulasse como religioso para fins de benefícios e isenções tributárias.
Essa terá sido, até então, uma questão silenciada por nosso ordenamento jurídico. Uma entidade é religiosa porque assim se autodefine. Acreditamos na boa-fé das organizações para promover suas crenças privadas. Mas esse é um pressuposto facilmente questionável se a democracia brasileira for ameaçada em um dos seus pilares fundamentais, que é a laicidade.
*Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero).
Acesse em pdf: A PEC nº 99/2011 e a laicidade, por Débora Diniz (Correio Braziliense – 04/04/2013)
Leia também: Pior que o caso do pastor, Editorial sobre PEC e laicidade (O Estado de S. Paulo – 31/03/2013)