(O Globo) Parece coisa de talibã, mas estamos na Europa. Era sexta-feira, Assembleia semivazia, suas excelências iniciaram o fim de semana mais cedo, muitas porque queriam escapar de um voto difícil. No fundo, no fundo, não sei qual é a boa decisão , admitiu Jean Louis Borloo, presidente do Partido Radical. A maioria fez um discurso humanista, alguns defenderam a prisão para os infratores, só dois ecologistas foram contra completamente. No fim da noite, os deputados tornaram ilegal o sexo pago na França, com a criação de pesadas multas – até 3.750 euros – para punir clientes das moças ou moços. O resto da lei será votado hoje, mas a Alemanha já decidiu seguir o exemplo francês: a chanceler Merkel ainda nem formou governo, porém, os partidos recém-aliados concordaram em prever multa aos flagrados usufruindo do sexo com pessoas obrigadas a se prostituir.
O mal-estar é evidente entre os franceses. Num país em que a glorificação do bordel faz parte da cultura nacional, é destaque nos museus e inspirou personagens deliciosos na literatura, esta intromissão na sexualidade dos outros parece coisa de regimes muçulmanos, duramente criticados no Ocidente por transformarem a vida privada em assunto de Estado. As feministas dividiram-se, tornou-se impossível identificar posições de esquerda e direita, militantes foram para as ruas – poucos, é verdade. O mal-amado presidente François Hollande ficou mudo, apesar de ter prometido na campanha acabar com a multa – criada pelo seu antecessor – contra as moças em busca de clientes na rua.
Os envolvidos diretamente na história (prostitutas, médicos e policiais) ficaram contra por razão bem prática: ao precisarem se esconder, elas/eles ficarão mais frágeis, menos protegidos da violência e pouco acessíveis a cuidados médicos.
As bandeiras dos anos 70 foram recuperadas com sinais trocados, em vez do slogan contra o racismo – Touché pas à mon pote (não toque no meu amigo) a palavra de ordem passou a um duvidoso Touche pas à ma pute , ou não toque na minha puta.
A resposta foi irônica, elas agradeceram a solidariedade e convidaram todos para o Bois de Boulogne, o mais tradicional lugar de Trottoir de Paris. Num país marcado pelo machismo, a necessidade de proteção à dignidade da mulher raramente monopolizou com tanta força o debate público , diz Morgane Diallo, definindo-se como trabalhadora do sexo e militante, num artigo no Le Monde em que debocha das intenções de legisladores de proteger as prostitutas.
A discussão ficou mais ou menos assim. O direito das mulheres de dispor do seu corpo, uma das palavras de ordem da luta pela igualdade de gênero, só vale para as brancas e bem-sucedidas? Por que feministas e os representantes do Estado se dão ao direito de tomar decisões com impacto sobre a vida de mulheres de classes menos favorecidas, em geral estrangeiras, que por vontade ou falta de opção se prostituem? O discurso oficial é o de proteger os mais frágeis da exploração de gigolôs ou de traficantes, mas nada na lei dá condições objetivas para combater essas máfias. A ideia é aplicar à prostituição a lógica capitalista: a punição a clientes desestimularia a oferta de serviços sexuais e acabaria com a mais antiga das profissões. Simplista demais para ser verdade.
Por uma provocação cósmica, na mesma semana, discussão semelhante fez uma entrada triunfal na Corte de Direitos Humanos da União Europeia, em Bruxelas, com o início do julgamento do direito da França de proibir as mulheres muçulmanas de cobrirem o rosto em lugares públicos. Foi um outro momento em que o Estado francês – ainda no governo de Nicolas Sarkozy – errou ao se meter a legislar sobre práticas e símbolos religiosos, embaralhando as fronteiras entre tradição, obscurantismo, liberdades individuais e o politicamente correto.
Na França, no mesmo período, a Corte de Apelação julgou que um centro de saúde estava certo ao demitir uma funcionária porque ela não quis tirar o véu, contrariando uma decisão anterior da Suprema Corte. Os dois lados defendem os mesmos argumentos, invocam liberdade de religião e direitos humanos. O advogado vai recorrer à Corte de Bruxelas mas, na vida real, policiais e patrões já desistiram de aplicar a lei, fazendo de conta que não estão vendo mulheres de burca.
Parece samba do crioulo doido, mas a proibição do véu e a criminalização dos clientes do sexo pago fazem parte do mesmo combate, da ideia que só existe uma escolha ética diante das encruzilhadas da vida. Nada mais falso no pluralismo moral do mundo multiétnico e multicultural do século XXI.
Os pontos-chave
1 França aprovou multa de até 3.750 euros para clientes de prostitutas.
2 Num país que glorifica o bordel, esta intromissão estatal na sexualidade dos outros parece coisa de regimes muçulmanos.
3 Ideia de que punição a clientes acabaria com a prostituição é simplista demais para ser verdade.
Acesse o PDF: Mulher, véu e prostituição (O Globo, 04/12/2013)