“É uma ação que eu movi para mostrar mesmo que não se deixa uma pessoa abandonada, rejeitada”, afirma a professora Luciane de Oliveira Souza
(Nádia Guerlanda e Johanna Nublat, da Folha de S.Paulo-DF, com Carolina Leal, de SP) Em decisão inédita, tribunal determinou que ele pague indenização por abandono de filho que teve fora do casamento. ‘Amar é faculdade, cuidar é dever’, afirma relatora; defesa do pai, que nega abandono, deve recorrer
Em decisão inédita, o Superior Tribunal de Justiça determinou a um pai que pague indenização de R$ 200 mil à filha por danos morais por abandono afetivo -quando um dos pais deixa de dar assistência moral ou afetiva, independentemente da questão material.
No processo, a filha, nascida fora do casamento e já maior de idade, afirma não ter recebido suporte afetivo do pai na infância e na adolescência e ter sido tratada de forma diferente dos outros filhos, nascidos dentro do casamento.
“Amar é faculdade, cuidar é dever”, disse a relatora do caso, a ministra Nancy Andrighi. Segundo ela, a discussão no processo não era o amor do pai pela filha, mas o dever jurídico que ele tem de cuidar dela.
“Entre os deveres inerentes ao poder familiar, destacam-se o dever de convívio, de cuidado, de criação e educação dos filhos (…), que envolvem a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento socio-psicológico da criança.”
A decisão foi dada pela terceira turma do STJ, que ainda não havia analisado o tema. Em 2005, a quarta turma negou indenização para caso semelhante. Em 2009, em recurso ao Supremo Tribunal Federal, houve nova recusa.
O abandono afetivo não é previsto em lei. Há dois projetos no Congresso que preveem indenização e até punição.
O processo começou em 2000 em Sorocaba (99 km de SP) e foi julgado improcedente na primeira instância. O Tribunal de Justiça reformou a decisão e fixou indenização de R$ 415 mil. Com o recurso para o STJ, o valor baixou para R$ 200 mil, corrigidos desde 2008.
Na ação, Antonio Carlos Jamas dos Santos, o pai, alega que não abandonou Luciane Nunes de Oliveira Souza, a filha. Seu afastamento teria sido motivado pela agressividade da mãe, que não o deixava visitar a criança. Afirmou ainda que a única punição possível pelo abandono afetivo seria a perda do pátrio poder.
Segundo a filha, além do abandono afetivo, houve diferença de tratamento entre ela e seus irmãos: eles estudaram em universidades privadas e cursaram idiomas, atividades às quais ela não teve acesso.
A condenação, apesar de levar em conta essa diferenciação entre filhos, não inclui indenização por dano material.
Para a ministra Nancy, a decisão “abre um caminho para a humanização da Justiça”.
O advogado do pai afirmou que deve recorrer. Como houve um voto divergente, um recurso deve ser analisado em conjunto pelas terceira e quarta turmas -uma delas terá de rever sua posição. O defensor afirmou que o cliente não quer comentar a decisão. O mesmo disse o advogado da filha.
Avaliar caso de abandono é complexo, diz terapeuta
Avaliar o abandono afetivo por parte de um pai e os danos que ele pode ter causado ao filho é tarefa complexa e depende muito de cada caso, na opinião da psicoterapeuta Tai Castilho. “Como vai ser avaliado esse abandono afetivo? Que lesões [do ponto de vista emocional] teve esse filho para mover uma ação?”
Segundo ela, em casos de separação conflituosa é comum a própria mãe se colocar de forma a afastar os filhos do ex-companheiro.
“Existe um jogo que é uma irritação da mulher de que os filhos fiquem com o pai.” Isso, diz, leva a mãe a falar mal do pai para os filhos e, muitas vezes, “os filhos se aliam à mãe e evitam o pai”.
Ela cita o caso de um jovem que ficou anos sem falar com o pai, acreditando que era negligenciado. Tempos depois, os dois se reaproximaram e o jovem descobriu que o pai observava o filho todos os dias na saída da escola, mas não tinha coragem de abordá-lo.
Já outra situação presenciada pela psicoterapeuta é a de um filho fruto de uma relação extraconjugal que ganhava pensão, mas era rejeitado pelo pai. “Isso eu entendo como abandono afetivo.”
Para Júlio Cézar da Mota, 32, que passou pela situação, é positivo ter garantido direito à indenização por abandono afetivo, mas a batalha judicial pode atrapalhar eventual reaproximação com o pai.
“É boa [a decisão], tem pessoas que pensam diferente de mim. Eu não tenho coragem de correr atrás disso agora, mesmo com a decisão do STJ. Se fosse mais cedo, quando eu tinha uns 22 anos, acho que eu teria outra cabeça e iria atrás.”
Para Mota, que trabalha em um cursinho de Brasília, é preciso pesar a vontade de se reaproximar da família.
“Não vai mudar [o passado] e acho que não fica legal em relação aos meus irmãos [por parte de pai]. Tenho um vínculo legal com eles. Agora, se o filho não quer ter uma reaproximação, mas quer a indenização, é outra coisa. Aí é indiferente a reação do pai.”
Ele conta que foi criado pela mãe e que sentiu a falta do pai, que tentou reaproximação só no fim da adolescência, diz. “A gente passa por uma fase em que tem que ter apoio de pai e mãe, não só financeiro, mas de orientação pra vida.”
Decisão é pedagógica, afirma advogado
Além de abrir precedente para casos semelhantes, a decisão do STJ fará os pais se perguntarem “como estão tratando seus filhos”, diz Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família
Folha – Como o sr. avalia a decisão do STJ?
Rodrigo da Cunha Pereira – Essa decisão é muito importante porque tem uma dimensão política muito grande e um caráter didático. Os pais vão se perguntar como estão tratando seus filhos. Qual é o argumento contrário? O de que não tem como obrigar um pai a amar um filho. Claro, mas o que está escrito na lei é que o pai é responsável pela educação do filho. E tem que responder por isso. Afeto, no sentido jurídico, não é um sentimento. Se traduz como um cuidado, como educação, como colocar limites.
A decisão abre margem para mais processos como esse?
Abre um precedente importante. Isso não tem volta, é a tendência da família mais contemporânea.
Qual o sentido da indenização?
É mais no sentido de responsabilizar o pai, que faltou com sua obrigação de dar cuidado. Se o tribunal disser que o pai não tem que responder por isso, está dizendo que o pai não é responsável pela educação do filho.
Qual o histórico dessa decisão?
Essa história começou em Minas Gerais, com um cliente meu, o Alexandre Fortes. Ganhamos, mas o STJ falou que era um equívoco. Isso foi discutido no Brasil todo, há várias decisões desse tipo, favoráveis, em nível estadual. Fiquei muito feliz agora porque o STJ tomou decisão diferente da que foi tomada alguns anos atrás. Mudaram os ministros e eles reconheceram o equívoco. Na época, tentamos levar o caso para o STF (Supremo Tribunal Federal), mas o tribunal não quis enfrentar a situação.
O caso julgado não cita também uma diferenciação material [entre os filhos]?
É diferente [da responsabilidade material] porque a lei diz que o pai é responsável materialmente e moralmente. Está na lei. Não é a questão material. Essa indenização é simbólica porque, seja qual for o valor da condenação, não vai resolver o problema. Não tem dinheiro que pague a falta de afeto.
Acesse em pdf:
STJ condena pai por não dar afeto a filha (Folha de S.Paulo – 03/05/2012)
Avaliar caso de abandono é complexo, diz terapeuta (Folha de S.Paulo – 03/05/2012)
Decisão é pedagógica, afirma advogado (Folha de S.Paulo – 03/05/2012)
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Em decisão inédita, STJ condena pai por ‘abandono afetivo’ de filha (O Estado de S. Paulo – 03/05/2012)
Sentença abrirá precedentes em instâncias superiores
(O Estado de S. Paulo) A decisão do STJ abrirá precedentes, segundo juristas. Nos tribunais regionais, a indenização por abandono afetivo não é inédita, mas parte dos casos não segue para instâncias superiores. “Pessoas que desistiam da ação nessa fase poderão agora apelar ao STJ”, avaliou o advogado Nelson Sussumu Shikicima, presidente da Comissão de Direito de Família da Ordem dos Advogados do Brasil-SP. Os tribunais superiores, ou terceira instância, são os que julgam recursos contra decisões dos órgãos de segunda instância. – Sentença abrirá precedentes em instâncias superiores (O Estado de S. Paulo – 03/05/2012)
Leia também:
Por que me abandonaste?, por Maria Berenice Dias (O Estado de S. Paulo – 06/05/2012)
06/05/2012 – Justiça avança em conflitos modernos