(Folha de S.Paulo) Defensor ferrenho da ortodoxia católica nas questões de moral sexual -foi adversário incansável do casamento gay na Argentina-, o novo papa é, ao mesmo tempo, uma voz em favor da justiça social. Seu ato público mais famoso, por exemplo, foi lavar e beijar os pés de pacientes com Aids, em 2001.
A combinação de características aparentemente dissonantes faz com que o papa Francisco possa ser considerado um moderado, ao menos no ambiente que prevalece hoje na cúpula católica.
Antes do conclave, ele defendeu uma igreja que arriscasse mais e não temesse o contato com o mundo lá fora -atitude que tem colocado em prática por meio de uma amizade de décadas com a comunidade judaica de Buenos Aires, por exemplo.
A primeira coisa a notar na formação religiosa do pontífice jesuíta é sua relação ambígua com a Teologia da Libertação, corrente que defendia um catolicismo próximo aos pobres e aliado a movimentos de esquerda.
Assim como aconteceu no Brasil em condições similares, a ditadura militar que dominou a Argentina no fim dos anos 1970 levou muitos religiosos a abraçarem o movimento como forma de resistência, em especial os da Companhia de Jesus.
Como provincial (chefe regional) dos jesuítas na Argentina, Jorge Bergoglio tentou evitar que seus colegas de ordem se tornassem meros militantes políticos. Em seus sermões e discursos, ele sempre enfatizou a necessidade de, antes de mais nada, reformar o coração dos indivíduos para alcançar uma sociedade mais justa.
Apesar disso, o tema da desigualdade nunca deixou de ser caro a ele. Na reunião dos bispos latino-americanos em 2007, declarou: “Vivemos na região mais desigual do mundo, a que mais cresceu economicamente e a que menos reduziu a miséria. Isso cria uma situação de pecado social que grita aos céus”.
O termo “pecado social” é significativo: aproxima-se da Teologia da Libertação, que enxerga o pecado não apenas como algo cometido por indivíduos, mas como inerente a uma sociedade injusta.
“PAI DA MENTIRA”
Se esse é o lado “progressista” de Bergoglio, sua faceta conservadora ficou mais do que clara em seus longos embates com o governo argentino. Ele não hesitou, por exemplo, em classificar a defesa do casamento gay como um plano do Diabo.
“Não sejamos ingênuos, não estamos falando de uma simples luta política; é uma pretensão destrutiva contra o plano de Deus. Não estamos falando de uma simples lei, mas de uma maquinação do Pai da Mentira que busca confundir e enganar os filhos de Deus”, afirmou o então arcebispo de Buenos Aires -“Pai da Mentira” é justamente como Jesus designa o Demônio no Evangelho de João.
Definindo a vida humana como “valor absoluto”, Bergoglio também é opositor feroz do aborto. Mas, mesmo nas questões de moral sexual, há nuances em seu pensamento.
Afirmou, por exemplo, que homossexuais devem ser aceitos “com respeito e compaixão”. Acusou de “clericalistas hipócritas” padres que se recusam a batizar crianças filhas de pessoas que não são casadas na igreja.
Embora defenda o celibato dos padres, chegou a fazer piada com as pressões que o catolicismo sofre para acabar com a prática: “Escutei certa vez um sacerdote dizer que [poder casar] lhe permitiria não ficar mais sozinho e ter uma mulher, mas por outro lado ele também acabaria arrumando uma sogra”.
LADO MÍSTICO
Alguns dos discursos do novo pontífice deixam entrever um lado místico importante, seguindo uma tradição tipicamente jesuíta de contato próximo entre o membro da ordem e Cristo.
“Apenas alguém que encontrou a misericórdia, que foi acariciado pela ternura da misericórdia, está feliz na presença do Senhor. Imploro aos teólogos presentes para que não me entreguem à Inquisição; mas, forçando um pouco as coisas, ouso dizer que o local privilegiado desse encontro é a carícia da misericórdia de Jesus Cristo pelo meu pecado”, afirmou ele, em 2001.
Pouco antes do conclave, ele defendeu que a igreja se abrisse mais ao mundo, para que não perdesse o risco de ficar “fechada em si mesma”. “Temos de evitar a doença espiritual de uma igreja autorreferente. É verdade que, quando saímos às ruas, assim como acontece com todo homem e mulher, acidentes podem acontecer. Mas, se a igreja permanecer fechada em si mesma, ela envelhece.”
Ao longo dos anos, Bergoglio cultivou relação próxima com as lideranças judaicas de Buenos Aires. Apoiou a comunidade israelita após o ataque terrorista em 1994 e escreveu um livro de diálogos religiosos em parceria com o rabino Abraham Skorka, intitulado “Sobre el Cielo e y la Tierra” (sem título em português).
Acesse em pdf: Argentino pode ser considerado moderado (Folha de S.Paulo – 14/03/2013)