(O Estado de S. Paulo) Uma pesquisa britânica mostrou no mês passado que, se você apresentar para o público frases de uma revista masculina e depoimentos de estupradores, ninguém consegue perceber a diferença. Agora, ganhamos mais um exemplo dessa afinidade. Uma revista brasileira voltada para homens lançou uma campanha publicitária chamada Manifesto pelo Homem Livre, baseada em pesquisa de agência que encontrou uma tal “masculinidade sufocada” entre eles. Nunca explicou direito o que é que está, de fato, sufocando os pobres coitados, mas já inspirou bandeiras como “sim, adoramos ver uma bela bunda passar” e “como casamento dá trabalho, deveríamos receber um mês de férias por ano”.
É uma tentativa grosseira de gerar barulho por meio da indignação dos leitores (e, principalmente, leitoras). Na internet, deu-se a isso o nome de “trolada”: defender um objetivo ridículo, em que nem você mesmo acredita, com a intenção de se tornar o centro das atenções. Acontece que a campanha gerou mais deboche do que raiva.
Apesar de insignificante, é triste ver uma campanha reforçar um discurso que já gerou tantas tragédias. A afirmação do poder dos homens sobre as mulheres é o que sustenta o machismo e várias formas de violência contra elas. Talvez você diga: “Ah, mas é só uma brincadeira…”. Foi exatamente o que eu ouvi quando comecei minha cruzada contra o assédio sexual em locais públicos, cinco meses atrás. Em julho, lancei a campanha Chega de Fiu Fiu, pelo site Think Olga. A ação tem um objetivo: mostrar como assédio humilha e intimida as mulheres, e exterminar esse comportamento. A luta partiu de uma aflição pessoal. Sofro assédio nas ruas desde antes de menstruar. A primeira vez foi aos 11 anos, quando um cara, na rua da minha casa, me disse palavras que os editores deste jornal não me deixariam reproduzir.
Não é uma história exclusiva minha. Amigas e conhecidas também se lamentavam, em voz baixa, sobre o problema. A discrição tinha motivo: o medo de serem taxadas de exageradas, reclamonas e até, veja só, metidas. O assunto, como costumo dizer, era tratado como um monstro invisível, sem nenhum dado ou informação que pudessem descrevê-lo.
Em agosto, com a jornalista Karin Hueck, tentei entender contra o que brigávamos. Publicamos no site um questionário sobre assédio, elaborado por ela. Em apenas duas semanas, 7.762 mulheres brasileiras haviam respondido. Entre elas, 83% disseram não gostar do que são obrigadas a ouvir nas ruas; 81% já deixaram de fazer tarefas cotidianas por medo de assédio; 90% já trocaram de roupa para evitar cantadas; 85% delas já sofreram com a tal “mão boba”.
Essas mulheres também compartilharam milhares de relatos terríveis. Iam de agressões verbais até contatos físicos – “um homem se masturbou ao meu lado”, “um cara se aproximou me chamando de linda e encostou no meu rosto a mão molhada de sêmen”, “quatro desconhecidos, ao cruzarem comigo na rua, tentaram rasgar minhas roupas”.
Um dos obstáculos da campanha é a frequente confusão entre agressão e elogio, e ela foi até acusada de tentar acabar com o flerte. O fato de alguém não ser capaz de diferenciar assédio sexual de relações românticas naturais já mostra como o assunto é problemático.
A verdade é que não é nada difícil diferenciar um do outro. Elogio demonstra respeito, assédio constrange e humilha. Faça o teste: você repetiria o xaveco com sua chefe? Se suspeita que ela pode não gostar e até o demitir, por que fazê-lo com uma estranha na rua? Talvez seja só porque alguns homens sentem que, em locais públicos, têm poder para fazer o que quiserem com as mulheres. Também disseram que esse é apenas um traço da tão famosa cordialidade do brasileiro. Quando o historiador Sérgio Buarque de Holanda usou essa palavra para descrever nosso povo, ele quis dizer que as relações por aqui “vem do coração”. Ou seja, as pessoas tendem a tratar quem está próximo como se fosse amigo ou membro da família, e a ignorar o que é público. O que as mulheres sofrem na rua é o oposto de ser cordial. É, na verdade, o pior traço cultural do País: ignorar o direito dos cidadãos comuns e não prezar uma vida pública de respeito e igualdade.
Mas o assédio sexual nas ruas não é um problema exclusivo do Brasil. É mundial. Não à toa, a ONU Mulheres lançou, em outubro, uma campanha contra ele. No fim do mês passado, Navi Pillay, alta comissária para os Direitos Humanos da ONU, alertou para a violência justificada pelas roupas que as mulheres usam. “Qualquer tipo de abuso contra mulheres é inaceitável, independentemente do que estiver vestindo”, disse.
Em países em que a igualdade de gênero é mais equilibrada, como Alemanha, Noruega e Suécia, o assédio sexual nas ruas praticamente não existe. Ou seja, isso é uma prova de que as tais cantadas estão intrinsecamente ligadas a uma questão de poder, e não a carinho ou valorização. O cenário, no entanto, está mudando. Pode ser visto no crescimento de vários grupos de combate ao assédio e no engajamento de muitos homens na Chega de Fiu Fiu.
Ante tantas evidências de que o problema existe e é grave, percebi que há dois tipos de reação por parte dos homens. Alguns tentam entender melhor o que está acontecendo e querem conversar com as mulheres para criar uma relação saudável para ambos os gêneros. Outros apenas trazem novos exemplos do problema: soltam palavrões (fui chamada de frígida, mal comida e vagabunda, além de outros piores) e até tentam silenciar o movimento com violência, como no caso das ameaças de estupro que recebi. São pessoas que se revoltam em perder o privilégio e, de maneira raivosa, sentem saudade de quando podiam explorar e humilhar quem eles quisessem sem dor na consciência. É como se quisessem voltar no tempo. Mas, como todos sabemos, não existem máquinas do tempo. É inevitável que esses sejam atropelados pela história.
JULIANA FARIA É JORNALISTA E CRIADORA DO SITE THINKOLGA.COM E DA CAMPANHA CHEGA DE FIU FIU, CITADA EM OUTUBRO PELA ONU MULHERES COMO UMA DAS INICIATIVAS CONTRA O ASSÉDIO EM LUGARES PÚBLICOS NO MUNDO
Acesse o PDF: Masculinidade Sufocada? por Juliana Faria (O Estado de S. Paulo – 14/12/2013)