O imbróglio instalado entre José Serra e Fernando Haddad a respeito do material didático depreciativamente chamado de “kit gay” é indicativo de uma esdrúxula atitude de Midas às avessas, que tenta transformar o mérito em perda e culpa
(O Estado de S.Paulo) O mérito encontra-se no fato de os dois candidatos terem tratado o tema em suas respectivas gestões, buscando organizações especializadas. Se ainda há o que corrigir e aperfeiçoar, esse processo faz parte do enredo educacional, e pede colaboração em vez de veto e censura. Quanto às coincidências que se identificam entre as propostas, não poderia ser diferente, porque qualquer trabalho sério voltado para o combate à homofobia precisaria ter bases sólidas, amparado em reconhecimento e experiência comprovada. Ou seja, os candidatos poderiam “acusar-se” mutuamente, apenas, de terem procurado empreender uma iniciativa relevante e séria, voltada para um tema delicado e inadiável. O que Serra poderia jactar-se, se quisesse, seria de ter ido até o fim, enquanto o governo federal recuou, indefeso, frente a pressões com as quais não soube dialogar.
Na comparação entre os conjuntos oferecidos pelos agora candidatos evidencia-se a semelhança entre as propostas. Os livros de apoio oferecidos são de mesmo teor, os vídeos são os mesmos ou semelhantes, tratando-se de recursos preparados pelo mesmo grupo de ONGs, respeitadas e com longa história no tema. Por exemplo, o vídeo Boneca na Mochila é de 1997 e, nesses 15 anos, já foi utilizado em inúmeras oficinas pelo Brasil.
Já a animação sem palavras Medo de quê, que também integra as duas propostas, projeto apoiado, entre outros, pela Fundação Elton John, evita o equívoco verborrágico que o tema em geral suscita, por desconhecimento ou pela carga preconceituosa que carrega. Lidando de modo suave com o tema sensível da descoberta da orientação sexual, aborda o estigma social que a cerca, sem fixar apenas aí a atenção. Estão ali expectativas de família e amigos, como também a busca de caminhos de aproximação social que atendam à afetividade em geral, não apenas a que acompanha a sexualidade, e que se manifesta em situações de estudo e lazer; ou seja, ao mesmo tempo em que aborda a sexualidade, coloca-a em perspectiva, indicando a plenitude da vida como horizonte. Dirige-se ao público adolescente, como se pretendia efetivamente utilizar na proposta do MEC, junto ao ensino médio.
É sabido que a escola tem dificuldade para lidar com a questão, em especial por toda a sensibilidade que a cerca. Presente na vida e na mídia, em ficção ou notícia, não haveria como a escola ignorar a aprovação pelo STF da união civil gay, que trouxe possibilidade de organização da vida afetiva de casais homossexuais, assim como da autorização para a adoção de crianças por casais homossexuais – as quais estão nos bancos escolares e têm direito a tratamento igualitário.
Comparativamente, há meio século, por exemplo, falar em sala de aula sobre gravidez fazia furor equivalente, sendo parte da história a queda e prisão de um secretário de Educação, em São Paulo, que ousou, no fim dos anos 1960, implantar educação sexual nos currículos, situação agravada pelo momento que se vivia, com a ditadura. Contudo, tantas décadas transcorridas, ainda não se conseguiu implantar na escola uma abordagem que auxilie os jovens a lidar com sua sexualidade de modo saudável e responsável, por exemplo, sabendo prevenir gravidez adolescente, que tem ainda um índice preocupante em nosso país, bem como evitar e precaver-se das DSTs/aids.
Em busca de alternativas para o enfrentamento do problema, e pelo alto nível da violência contra homossexuais, criou-se o Programa Brasil sem Homofobia, reunindo ações de diferentes ministérios, sendo a distribuição de material didático apenas parte da proposta. Ou seja, são duas dimensões a abordar: uma, a daquele que é discriminado, e a outra, daquele que discrimina. Além do óbvio fato de que ninguém se “converte” a homo ou heterossexual, não cabendo por isso alegar qualquer tipo de doutrinação, o que está em jogo em programas educativos é esclarecer, de modo a tornar a convivência mutuamente respeitosa, tanto na sociedade como no âmbito das instituições. Afinal, esse é um direito básico de toda a cidadania.
Família e comunidades religiosas, salvo exceções, deixam de tratar o tema da sexualidade em geral, e quando o fazem nem sempre é de modo aberto, franco e esclarecido. Como parte de uma sociedade cujas práticas estão à frente da mentalidade, que muda muito lentamente, esses protagonistas do processo educacional têm dificuldade de lidar com as nuances que o tema mais amplo indica, em especial na relação com ocorrências diversas de ruptura da heteronormatividade dominante. Não sabendo lidar com o que é, ainda, desconhecido, censuram ou no máximo ignoram, condenando ao silêncio quem não se enquadra no usual. O silêncio conduz à discriminação, que se apoia no preconceito nascido e alimentado na ignorância, impulsionando o ciclo vicioso que impõe mais silêncio e condena à solidão ou a qualquer gueto adolescentes que principiam a se descobrir em identidade e desejo, compondo novas dimensões de sua vida. Nesse sentido, o governo do Estado de São Paulo apoia, em conjunto com órgãos federais, a Escola Jovem LGBT, primeira escola paulista dessa modalidade, situada em Campinas, que oferece atividades artísticas e espaço de convívio e formação.
Seria, ainda, possível mencionar a impropriedade da busca de religiosos como apoio político, inaceitável em um Estado laico, como o Brasil. Contudo, o valor da separação entre Estado e religiões, particularmente como proteção para os cultos e autoridades religiosas, parece ter ficado explicitado na armadilha em que se transformou o apoio do conhecido pastor a Serra, para o próprio pastor. Envolvido por iniciativa própria no embate eleitoral, para “arrebentar Haddad”, como dissera, uma vez constatado o programa do governo estadual de Serra semelhante ao que atacava no adversário, viu-se na iminência inevitável de ter que achar argumentos para apoiar, imaginem, o “kit gay” de seu candidato. Incomparável, disse ele.
Por séculos o Brasil encarou as diferenças originadas nas diversidades como justificativa e fundamento para a desigualdade, fazendo do país um recordista da injustiça social, das violações de direitos, de todo tipo de discriminação. O racismo se enraizou e apenas recentemente ações afirmativas diversas vêm mudando esse quadro. Grupos religiosos minoritários sofreram violência, incluindo agressão física, até conquistar o espaço que hoje têm. Em questões de sexualidade, o falso moralismo, aliado ao medo de um tema que mexe com estruturas humanas profundas, por muito tempo impediu o debate, sacrificou cidadãos e personagens de novelas no altar da intolerância, até chegar ao ponto de haver, como agora em Avenida Brasil, um trio que se relaciona de modo público, assume uma gravidez como obra realizada a três e tem a simpatia popular. Enquanto isso, contudo, na vida real, continua a violência contra jovens que assumem sua orientação homossexual. Que os candidatos, em vez de se acusarem por seus méritos, comprometam-se com iniciativas que, em colaboração com a sociedade, possam fazer efetivamente o enfrentamento da discriminação por sexo e gênero na escola, sem hesitar. É o mínimo que se espera.
*Roseli Fischmann – Professora de Pós-graduação em educação da USP
Acesse em pdf: Kit imbróglio, por Roseli Fischmann (O Estado de S. Paulo – 22/10/2012)