(Carta Maior, 01/11/2015) Enquanto o tornar-se mulher for um destino de opressão e dor, será necessário sim que a palavra gênero esteja nos planos da educação
Nos últimos meses, muito se ouviu falar sobre “gênero na educação”. Durante a votação do Plano Nacional da Educação – PNE e, na cidade de São Paulo, do Plano Municipal da Educação – PME-, a disputa travada entre grupos feministas e de defesa de direitos humanos, de um lado, e religiosos, do outro, resultou na retirada da palavra “gênero” desses planos, embate que tende a ocorrer, novamente, durante a votação do Plano Estadual para a Educação de São Paulo.
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Na última semana, o tema votou para a mídia e as redes sociais após o Enem – Exame Nacional do Ensino Médio ter trazido, em uma das perguntas da prova de múltipla escolha, um trecho do clássico “O segundo sexo” de Simone de Beauvoir, além do tema da redação ter sido a “persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Isso tudo passando pela criação de um Comitê de Gênero pelo Ministério da Educação – MEC que, dias depois, teve seu nome alterado para Comitê de Combate à Discriminação.
Mas o que esses episódios têm a ver um com o outro?
Simone de Beauvoir revolucionou a “questão da mulher” ao afirmar que ninguém nasce mulher, torna-se mulher. E que o destino das mulheres não está armazenado em seu código genético, mas inscrito no curso de uma civilização historicamente construída. O que significa dizer que esse “devir” do ser feminino tem condicionantes sociais, econômicas e culturais.
É como se a sociedade fosse o anjo esbelto da poetisa Adélia Prado, que anuncia “o destino de carregar bandeira, cargo muito pesado para mulher, esta espécie ainda envergonhada”. Desde pequenas, as meninas são ensinadas a desempenhar tarefas domésticas que os meninos não fazem. Ou fazem menos. Enquanto pouco mais de 37% dos meninos de 10 a 15 anos dedicavam-se ao trabalho doméstico, mais de 69% das meninas faziam o mesmo.
É também desde menina que essa “espécie ainda envergonhada” conhece a violência de gênero, como o “caso Valentina” e a campanha #primeiroassédio do Think Olga evidenciaram na última semana. A menina é ensinada, em casa e na escola, a brincar de boneca, a cuidar e a ser dócil, enquanto o menino é ensinado a ser valente e racional. Homem não chora. Mas vai bem na olimpíada de matemática e vira engenheiro. A mulher, que cuida direitinho, vira enfermeira. Enquanto 84% dos(as) estudantes de enfermagem eram mulheres, elas representavam menos de 10% dos(as) estudantes de engenharia mecânica e metalúrgica.
Nessa mesma civilização, a enfermeira ganha menos e é menos prestigiada do que o engenheiro. Ainda que cuidar de alguém doente seja mais imprescindível para a sobrevivência humana do que construir uma ponte.
Mas, onde se ensina tudo isso? Em casa, nas brincadeiras na vizinhança, na TV, e também, claro, nas escolas.
Acontece que esse “tornar-se mulher” tem dores e delícias de se ser o que se é. E ocorre que muitas dessas mulheres resolveram, juntas, rebelarem-se contra essa missão de carregar bandeira, ateando-lhe fogo e declarando guerra contra essa civilização. Elas haviam se tornado feministas.
Muito antes de Simone publicar “O segundo sexo”, essas mulheres feministas vêm denunciando a opressão de gênero. E foi graças a luta dessas mulheres – “mal comidas”, “histéricas” e “malditas”, como dizem por aí – que foi aprovada, em 2006, no Brasil, a Lei Maria da Penha (11.340) e criou-se uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. A Lei, marco do enfrentamento à violência doméstica no Brasil, carrega o nome de uma mulher que, por sua vez, carrega em seu corpo as marcas permanentes dessa violência, que se conhece desde menina. Mas que, ao não se calar, deu nome ao que o silêncio condenava à invisibilidade e à naturalização. E a voz dela, somada a de muitas outras mulheres, reverberou de tal forma que chegou ao ouvido de mais de 7 milhões de estudantes que, no domingo passado, tiveram até 30 linhas para refletir sobre essa questão.
Não sabemos se eles sabiam. Mas era uma questão de vida ou morte. De morte, porque ocorrem mais de 5 mil mortes de mulheres por causas violentas por ano ou, ainda, 1 a cada hora e meia, sendo que quase 30% dos feminicídios acontecem dentro de casa, o que significa quase um terço dos casos. Mas também de vida, uma vez que muitas dessas mulheres encontram naquilo que o gabarito do Enem deu como resposta correta, a resposta da vida delas: um movimento social para garantir a igualdade de gênero. Em outras palavras, elas encontram o feminismo.
Essa resposta vem, contudo, tendo seu gabarito constantemente questionado. Por um lado, mulheres que “se tornaram” mulheres, mas que só isso não as definem. São mulheres que também são negras, indígenas, lésbicas e transexuais. E que passaram a questionar esse feminismo, para alargar seu significado e reconhecer que outras formas de opressão se combinam nessa complexa equação.
Por outro lado, políticos, religiosos, “cidadãos de bem” e afins começaram a questionar a “ideologia de gênero” – esse termo que nem existe, tampouco faz sentido.
Na prova de fogo do debate sobre planos de educação – que irá balizar as ações dos governos de diferentes instâncias nos próximos 10 anos – a Câmara de São Paulo decidiu, em agosto, por maioria, a retirar a palavra gênero do PME. Os vereadores, com frequência, anunciavam seus votos colocando-se “contra a ideologia de gênero“.
Essa ascensão de fundamentalismos morais e religiosos, que vem ganhando muita força nos últimos anos, interrompeu uma política que vinha se consolidando nas últimas décadas. Desde a criação de um órgão específico de políticas para as mulheres no governo federal (em 2003 foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres, atualmente em processo de aglutinação com a Secretaria de Igualdade Racial e de Direitos Humanos), os 3 Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, editados de 2004 até os dias de hoje, trouxeram a questão da “educação e gênero” como compromisso do Estado brasileiro. Reconhecendo que a escola acaba reproduzindo as desigualdades que existem na sociedade, os Planos propuseram-se a fomentar iniciativas que promovam o respeito à diversidade e o enfrentamento dos preconceitos nas relações sociais, nos currículos e nos livros didáticos. Uma dessas ações foi o Programa Gênero e Diversidade na Escola, que teve como objetivo a formação de professores e professoras em conteúdos como gênero, sexualidade, raça e etnia.
Há, portanto, um evidente movimento de refluxo ocorrendo na questão de “educação e gênero”. Seria a prova do ENEM um salto no sentido contrário? Ou uma provocação?
Não há gabarito para essas perguntas.
Mas a primeira questão que se deve responder é: algumas mulheres são recorrentes nos vestibulares para as universidades públicas no Brasil, como a própria Adélia Prado. Por que Simone, consagrada como uma das grandes pensadoras da civilização ocidental, incomoda tanto? Além da resposta do gabarito do Enem, há uma outra possível.
O ponto central está menos no feminismo em si. Gostem ou não, ele é um dado histórico e já pertence a essa civilização, o que já o qualifica para ser objeto de pergunta em provas de teste de conhecimento para ingresso no ensino superior. É na direção dessa onda obscurantista, mix de fundamentalismo religioso e moral, que a resposta aponta. Que se propõe a tirar zero na prova da democracia e a não querer testar seus argumentos no debate, mas sim fazer calar os outros no grito. Assim como excluir dos planos educacionais o compromisso com a educação cidadã, o que deixa de dar condições iguais para meninas e meninos construírem, com autonomia, suas próprias biografias.
É importante lembrar que a civilização já teve muitos capítulos em que pessoas e livros foram queimados (e não só bandeiras). E, como a gente aprende na escola, esses não foram os momentos mais brilhantes da história humana.
A segunda é que violência contra as mulheres não é questão só de um grupinho de feministas ou de uma esquerda que quer doutrinar vestibulandos(as). Mas é uma preocupação de toda a sociedade. Ou, ao menos, deveria ser. É um tema que, infelizmente, continua atual, assim como o desafio de torná-lo uma página virada em um livro de “História do Brasil e Geral” do futuro. Nossos mais de 7 milhões de estudantes foram convidados, no último domingo, a começar a escrever esse futuro.
O resumo dessa história é que a questão “gênero e educação” está longe de ser problema resolvido. O fato da palavra maldita ser tirada dos planos sobre a educação não significa que o enigma da esfinge foi solucionado.
Enquanto o tornar-se mulher for um destino de opressão e dor, e essa letra for ensinada na escola, será necessário sim que a palavra gênero esteja nos planos da educação. E que o feminismo seja questão de prova para acesso ao ensino superior público brasileiro, assim como a violência contra as mulheres. Esse é o “x” da questão. E as Adélias e Simones continuarão lembrando a juventude brasileira disso. Ainda bem.
(1) Os dados sobre afazeres domésticos referem-se a 2013, coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios-PNAD, disponibilizados em “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça” (http://www.ipea.gov.br/retrato). Os dados sobre violência foram retirados de “Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, referente aos anos de 2009 a 2011. Por fim, os dados referentes às matrículas em graduação retratam o ano de 2011 e foram coletados pelo INEP, estando reunidos no Relatório Anual Sócio-Econômico da Mulher – RASEAM, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, de 2013.
Mariana Mazzini Marcondes é Doutoranda em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo
Acesse no site de origem: O gênero na educação: o ‘xis’ da questão, por Mariana Mazzini Marcondes (Carta Maior, 01/11/2015)