Relatório a ser apresentado por mais de 20 organizações da sociedade civil brasileira em reunião na sede da ONU em Nova Iorque a partir desta semana avalia que o Brasil deu poucos passos rumo à conquista de sete objetivos globais que serão analisados no fórum — entre eles, erradicação da pobreza, fome zero e agricultura sustentável, saúde e bem-estar e igualdade de gênero.
(ONU Brasil, 10/07/2017 – acesse no site de origem)
Apesar disso, as organizações afirmam que, sob o ponto de vista da governança da Agenda 2030, o Brasil registrou avanços. O país é o único da América Latina a criar uma Comissão Nacional dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) com representação paritária entre governo e sociedade civil.
“Poucos foram os passos dados para a implementação dos ODS no país”, diz o Relatório-Luz da Sociedade Civil, elaborado por 21 organizações e editado pela GESTOS – Soropositividade, Comunicação e Gênero e pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).
“Os resultados são extremamente preocupantes diante dos desafios de erradicar a pobreza e eliminar a fome, assegurar a inclusão sócio-produtiva, garantir uma vida saudável, alcançar a equidade de gênero, construir infraestrutura resiliente e acessível a todas as pessoas, promover industrialização inclusiva e sustentável, estimular a inovação e proteger os ecossistemas marinhos”, analisa o documento.
O Fórum Político de Alto Nível da ONU ocorre de 10 a 19 de julho e receberá relatórios tanto das ONGs como do governo brasileiro sobre a implementação nacional de sete dos 17 ODS: 1 (erradicação da pobreza), 2 (fome zero e agricultura sustentável), 3 (saúde e bem-estar), 5 (igualdade de gênero), 9 (indústria, inovação e infraestrutura), 14 (vida na água), 17 (parcerias e meios de implementação).
No Brasil, o relatório foi apresentado em evento na última sexta-feira (7) na Casa Fluminense, localizada na Glória, região central do Rio de Janeiro, para posteriormente seguir para apresentações em outras cidades do país.
“O relatório tem tom bem crítico porque, na nossa avaliação, este é o caminho que o país está tomando. Apesar desse compromisso assumido pelo Brasil na Agenda 2030, no ambiente externo, há coisas indo na contramão (da agenda)”, diz Fabio de Almeida Pinto, coordenador-executivo do Instituto Democracia e Sociedade.
Erradicação da pobreza (ODS 1)
O documento da sociedade civil afirma que o Brasil teve sucesso até 2014 ao atingir antecipadamente o Objetivo do Desenvolvimento do Milênio (ODM) de reduzir a fome e a pobreza. Em 2002, o país alcançou a meta da ONU de reduzir a fome e a pobreza à metade e, em 2008, cumpriu meta nacional de reduzir a pobreza a um quarto do registrado em 1990.
Nos últimos anos, porém, as organizações avaliam que o cenário começou a mudar. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), citados no documento, mostram que o percentual da população brasileira abaixo da linha da pobreza reverteu tendência de queda e subiu de 12,7% em 2013 para 13,9% em 2015.
“O enfrentamento equivocado do déficit fiscal acumulado e o descaso com problemas estruturais, como a reforma tributária, levaram o país a uma crise econômica que agravou o desemprego”, diz o relatório. No início de 2017, o país bateu o recorde da série histórica com 14,2 milhões de desempregados. Segundo as organizações, desde 2016, a redefinição de prioridades nas políticas públicas “acende a luz vermelha para a possibilidade de o país cumprir o ODS 1”.
As ONGs criticam ainda a aprovação no ano passado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita o aumento dos gastos públicos por 20 anos, as propostas de reforma previdenciária e trabalhista e seus efeitos sobre a proteção dos trabalhadores e da população mais pobre.
“A severidade das alterações propostas na previdência social, ao tratar como iguais os trabalhadores pobres e aqueles de maior renda, penaliza desigualmente os primeiros, cuja renda é integralmente dirigida às necessidades essenciais de suas famílias”, destaca o documento.
Sobre a reforma trabalhista, as ONGs avaliam que a “prevalência do negociado sobre o legislado” poderá significar perdas para os trabalhadores, inclusive pelos efeitos da nova legislação da terceirização no ambiente trabalhista.
Entre as recomendações, as organizações sugerem investir num desenvolvimento econômico que garanta inclusão social e geração de emprego, garantir a progressividade tributária (de forma a onerar os mais ricos e não os mais pobres); prosseguir na recuperação do valor real do salário mínimo; entre outros pontos.
Fome zero e agricultura sustentável (ODS2)
O relatório avalia que o acesso aos alimentos pela população em situação de maior vulnerabilidade teve avanços significativos no Brasil nas duas últimas décadas, com redução da fome a níveis comparáveis a países desenvolvidos.
O avanço ocorreu graças ao aumento da renda dos extratos sociais pobres e extremamente pobres, além de melhores índices de emprego, de formalização do trabalho com aquisição de direitos e de elevação dos salários (particularmente a recuperação do salário mínimo). Outro fator foi o fortalecimento dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família.
Na agricultura sustentável, no entanto, as organizações afirmam que “o cenário atual é de retrocesso”. “As prioridades do governo brasileiro e o controle exercido pela bancada ligada ao agronegócio dentro do Congresso Nacional aumentam as ameaças sobre um cenário já preocupante”, diz o documento.
O relatório cita preocupação com a hegemonia do agronegócio no acesso a recursos, cuja base de produção caracteriza-se pela expansão das culturas transgênicas e uso intensivo de agrotóxicos. “Somos o maior consumidor global de agrotóxicos, um dos principais desafios para a sustentabilidade ambiental no campo”, afirmaram as entidades.
As ONGs recomendam mais transparência na rotulagem de alimentos, incluindo informações sobre transgênicos e uso de agrotóxicos; o fortalecimento da agricultura familiar em base agroecológica; a promoção do desmatamento zero, combatendo a perda de vegetação desde a aprovação do novo Código Florestal em 2012; entre outros pontos.
Saúde e bem-estar (ODS3)
Sobre o objetivo de garantir a saúde e o bem-estar da população, o documento das ONGs afirma que a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal de 1988 representou um avanço, colocando o Brasil entre o reduzido grupo de países que possuem um sistema de saúde pública universal.
As organizações lembram que, desde o final da década de 1980, houve importante redução da mortalidade neonatal e infantil no país e queda de incidência de epidemias tropicais e de doenças transmitidas pela água. No entanto, alertam que atualmente o próprio SUS corre risco de ser enfraquecido.
“O SUS vem sendo esvaziado por ineficiência administrativa e política em benefício de empresas financeiras da saúde e em detrimento dos direitos humanos, o que cria barreiras para o alcance do ODS 3”, pontua o documento.
“Prolifera o modelo de seguros privados de saúde, que por sua vez inflacionam os serviços e dificultam o acesso à maior parte da população.”
O relatório alerta ainda que o índice de gravidez na adolescência permanece alto no Brasil na comparação com outros países. Segundo as ONGs, o país não alcançou o ODM relativo à saúde materna, registrando elevado número de cesarianas e uma baixa qualidade do atendimento médico às mães.
As entidades também atentam para a disseminação dos vírus de dengue, chikungunya e zika, que têm afetado principalmente áreas mais pobres e com maior déficit de saneamento básico. “No último ano, houve uma redução nas taxas de infecção, mas há indicações que seja uma epidemia sazonal, como outras transmitidas pelo mosquito”, destacou o relatório.
As organizações recomendam investir e aumentar os recursos programados para o SUS, de forma a melhorar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde; aumentar o nível de regulação sobre os planos de seguro privados; regular e monitorar efetivamente a formação de Parcerias Público-Privadas (PPPs) com Organizações Sociais na saúde, entre outros pontos.
Igualdade de gênero (ODS5)
Sob os aspectos formais, o Brasil avançou no combate às desigualdades de gênero, tendo assinado os principais instrumentos internacionais sobre o tema, introduzido leis que criminalizam a violência de gênero e instituído o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, avaliam as organizações no documento.
No entanto, o país permanece em situação preocupante. O Brasil ocupa a quinta posição global em número de homicídios de mulheres, é o quarto lugar em números absolutos de meninas de até 15 anos casadas e é o que mais mata mulheres transexuais e travestis no mundo.
“A violência de gênero é naturalizada na sociedade, que recorrentemente atribui às mulheres e meninas a responsabilidade pela violência sofrida”, afirmam as ONGs. Segundo o relatório, a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil, sendo que meninas de até 17 anos respondem por 70% das vítimas.
As organizações alertam que, desde 2015, muitos dos organismos dedicados à garantia dos direitos das mulheres foram extintos ou perderam sua autonomia.
Além disso, recursos destinados ao fortalecimento das mulheres na agricultura familiar e agroecologia sofreram comprometimento, e o ministério antes responsável pela execução destas políticas foi extinto, sem que um novo órgão federal assumisse suas atribuições.
“A saúde sexual e reprodutiva tem pontos cruciais desprezados, o aborto ainda é criminalizado, com apenas três excludentes legais, apesar das estimativas apontarem a realização de 1 milhão de abortos clandestinos anualmente, chegando a ser a terceira causa de morte materna em grandes capitais”, afirma o documento, completando que o risco enfrentado pelas mulheres negras chega a ser três vezes maior.
De acordo com as organizações, a educação é apontada como a estratégia mais eficaz para promover a equidade de gênero. No entanto, iniciativas legislativas nas três esferas de governo têm eliminado a discussão dos temas gênero e diversidade sexual do espaço escolar, alguns dos quais responsabilizam criminalmente professores que o façam.
As organizações recomendam assegurar e promover a discussão de gênero e diversidade sexual, baseada nos direitos humanos, nos ambientes escolares; garantir a efetividade da Lei Maria da Penha, implementando adequadamente todos os elementos da rede intersetorial de enfrentamento da violência doméstica e familiar; tornar legal e acessível o aborto seguro em todas as situações; entre outros pontos.