(O Estado de S. Paulo, 16/05/2016) A extinção de secretarias que defendem interesses das minorias põe abaixo em uma canetada uma política de Estado de direitos humanos que levou décadas para ser construída, acima de questões partidárias, diz cientista político
O governo federal interino instalou um ministério de apenas homens brancos com a divisa “Ordem e Progresso”, que encerra o que há de mais conservador no pensamento político brasileiro. Seria bom alguém dizer a esse governo que estamos em 2016, e não em 1889.
O seu primeiro ato foi mandar para o espaço a ciência, a cultura e os direitos humanos. Nessa área, extinguiu as secretarias da Igualdade Racial, das Mulheres e a dos Direitos Humanos. Assim fazendo o governo interino revela uma sesquipedal ignorância em duas vertentes. Primeiro na esfera do direito internacional e, em segundo, quanto à política de Estado de direitos humanos, relegando-a a uma divisãozinha de Cidadania no Ministério da Justiça.
Depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, e a partir dos dois pactos internacionais de direitos civis e políticos e aquele dos econômicos, sociais e culturais, progressivamente foram reconhecidos os direitos das crianças, das mulheres, dos indígenas, dos migrantes, dos idosos e de temas como a tortura, as execuções sumárias pelas polícias, a pedofilia, a homofobia. O conceito de cidadania que o governo provisório resolveu enfiar no Ministério da Justiça não dá absolutamente conta dessa complexidade que a garantia dos direitos humanos assumiu na segunda metade do século 20.
Por sua vez, a decisão da extinção das secretarias de Estado põe abaixo a continuidade, acima dos partidos políticos, da política de Estado de direitos humanos no Brasil. Pode-se dizer que todos os governos depois da volta ao governo civil em 1985 contribuíram, cada um à sua maneira, para a promoção e proteção desses direitos.
Sarney na sua ida à Assembleia da ONU assinou a convenção da tortura e o Pacto Internacional de Direito Humanos. Collor enviou uma circular aos postos diplomáticos brasileiros obrigando-os a responder às cobranças das organizações de direitos humanos e, da tribuna da ONU, afirmou que a soberania nacional não pode ser o escudo de proteção das violações desses direitos no Brasil. Itamar formulou com a sociedade civil a agenda brasileira para a Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena em 1993, na qual o Brasil teve um papel protagonista com a presidência do comitê de redação da declaração e programa de ação de Viena.
Fernando Henrique cria a secretaria de Estado de direitos humanos, para dar mais visibilidade a eles, como registra em seu Diários da Presidência. Foram preparados os Programas Nacionais de Direitos Humanos (PNDH 1), com ênfase nos direitos civis e políticos, e o PNDH 2, com ênfase nos direitos econômicos e sociais. Pela primeira vez na República foi criado um programa e organismo de combate ao trabalho escravo. Foi reconhecida a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que permitiu que mais tarde fosse exarada a sentença sobre as operações de extermínio da guerrilha do Araguaia pela ditadura militar.
Lula transformou a secretaria de Estado em Secretaria Especial da Presidência da República e criou as secretarias especiais também na presidência das políticas da mulher e da igualdade racial. Preparou o PNDH 3, alargando nacionalmente as bases da sua elaboração nos Estados da Federação, inusitadamente publicando as duas introduções de Fernando Henrique aos dois PNDH anteriores. Apesar de enorme resistência, propôs e sancionou a lei contra o castigo corporal das crianças e enviou ao Congresso um projeto de lei criando a Comissão Nacional da Verdade, sobre os crimes da ditadura militar. A presidenta Dilma Rousseff foi na mesma direção. Por convocação de seu governo, todos ministros e secretários de Estado de Direitos Humanos se mobilizaram para defender a aprovação da lei sobre a Comissão Nacional da Verdade no Congresso Nacional. Instalou a Comissão Nacional da Verdade, a qual garantiu todo o apoio sem jamais fazer nenhuma interferência nos seus trabalhos, somente tomando conhecimento do relatório quando estava impresso.
Afinal, qual o impacto dessa política de Estado de direitos humanos? Essas frestas abertas pelo mais alto escalão do governo federal, especialmente a partir de 1995, fizeram entrar nas políticas do governo federal direitos e temas na defesa daqueles tradicionalmente excluídos, que outrossim jamais teriam podido ter sido promovidos. Tortura, racismo, homofobia, execuções sumárias pelas polícias militares, violência contra a mulher, trabalhadores escravos, portadores de deficiência, federalização dos crimes de direitos humanos, programas de proteção às vítimas, passaram a ser alvos de políticas publicas de garantia e prevenção. Enfim, uma infinidade de pautas que nunca tiveram espaço nem na ditadura militar nem no autoritarismo socialmente implantado que prevalece na democracia.
Essa liquidação da política de Estado e dos mecanismos nela construídos corresponde por sua vez aos projetos de lei de desmonte da constitucionalidade de 1988, como a destruição do Estatuto do Desarmamento, a redução da idade laboral e da maioridade penal, o cerceamento dos direitos das mulheres, o enfraquecimento da definição de trabalho escravo. Não esqueçamos a já sancionada lei antiterrorismo, abrindo caminho para a criminalização dos movimentos sociais, que certamente esse governo não hesitará em usar, se levarmos em conta o novo ministro da Justiça, que classifica protestos populares como “guerrilhas” (sic).
O desaparecimento das secretarias de direitos humanos convida a um prognóstico profundamente alarmante em relação a todos esses temas, pois vai acarretar na destruição de estruturas e mecanismos construídas a duras penas, em parceria com a sociedade civil, durante todos os governos democráticos para implementação dos direitos dos pobres e excluídos.
Quanto aos direitos humanos, com esse governo extremamente conservador que ora aparece, nunca no Brasil foi tão atual o ditado de que o pior ainda está por vir.
Acesse o PDF: Passo atrás, por Paulo Sérgio Pinheiro (O Estado de S. Paulo, 16/05/2016)