Plano Nacional de Educação: Por que o gênero assusta tanto?

30 de abril, 2014

(Clam, 30/04/2014) Os esforços na construção de relações sociais menos desiguais em termos de gênero e sexualidade sofreram um revés na última semana, no Brasil. Foi retirado do texto do Plano Nacional de Educação (PNE), projeto de lei que define diretrizes e metas para a educação até 2020, a menção às questões de gênero e orientação sexual. A supressão é efeito da pressão de setores religiosos conservadores que, incomodados com práticas pluralistas que contradizem seus valores morais, têm dificultado, no âmbito da educação, o desenvolvimento de políticas em nome dos direitos das mulheres, dos direitos sexuais e reprodutivos, assim como qualquer medida no marco dos direitos humanos.

A importância de se discutir tais questões no âmbito da educação é atestada pela amplitude e incidência de crimes homofóbicos e violência de gênero no Brasil. Estes ocorrem no contexto de uma história e uma cultura construída com linguagem machista, sexista e homofóbica que vitima, antes tudo, no âmbito simbólico. As mulheres, as lésbicas, transexuais, travestis, bissexuais, gays e outros sujeitos sexuais marginalizados têm suas imagens desvalorizadas, o que enseja um clima favorável a violências de todo tipo. Tratar a discussão sobre gênero e diversidade sexual como matéria de educação significa dar um passo importante para reduzir as desigualdades e a violência que marcam o país.

A entrada dessas temáticas na escola tem enfrentado resistência e, eventualmente, tem sido impedida, conforme demonstra a movimentação que levou ao recuo no PNE. Setores religiosos conservadores instalados no Congresso e em outros espaços políticos têm se valido do crescimento da fé evangélica para extrapolar seus valores morais para o âmbito da política de estado. Nesse contexto, grupos católicos conservadores somam-se ao movimento para colocar em marcha a ofensiva.

Ainda que haja pluralidade dentro da doutrina cristã, a ideia de mulher e homem é um conceito rígido, formado a partir de uma concepção naturalizada do indivíduo. A partir dela, surgem as figuras tradicionais idealizadas de homem e mulher, cujos gêneros são compreendidos como uma continuação do corpo biológico. Nesse contexto, a vida afetiva e sexual é foco de um intenso investimento moral. O arranjo conjugal legítimo envolve homem e mulher – concebido como unidade reprodutora natural. Quando proposições novas que projetam outras possibilidades de arranjos afetivos e conjugais, assim como identidades e práticas de gênero à margem das tradicionais, são colocadas em discussão, uma orquestrada reação se articula contra o que os movimentos conservadores têm denominado “ideologia do gênero”.

“A retirada da questão de gênero e orientação sexual demonstra o incômodo de alguns setores religiosos com uma visão mais plural de sexualidade e gênero. A sexualidade, vista e compreendida como algo da ordem do controle, é afrontada. Por isso, a reação”, afirma a socióloga Amanda Mendonça (UFF), que estuda as articulações entre religião e educação.

Durante a votação na Comissão especial sobre o PNE da Câmara dos Deputados, que votou o texto base, parlamentares e ativistas que pressionaram pela retirada das questões do texto levaram cartazes com dizeres do tipo “Gênero não!” ou “Não à ideologia de gênero!”. O incômodo é direcionado à possibilidade de se pensar as relações de gênero e sexualidade fora do marco religioso. No texto original, estava previsto promover “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Pensar políticas nesse sentido é reconhecer uma pluralidade de concepções de homem e mulher, além do tradicionalmente considerado “natural”, ou da concordância entre gênero e sexo somático. É reconhecer que as vivências individuais são construídas socialmente e, por isso, podem se configurar de muitas formas e através de diversas identidades. Não foi isso que prevaleceu. A redação final acabou mencionando, mais genericamente, “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.

Na votação, parlamentares contrários à discussão sobre gênero e diversidade sexual justificaram a retirada das questões como uma forma de enfrentamento à “ditadura gay”. Por essa linha de raciocínio, toda e qualquer iniciativa de diversidade sexual e igualdade de gênero é um pretexto para a “doutrinação homossexual”.

Argumento semelhante esteve na origem das pressões de setores religiosos que levaram a presidente Dilma Rousseff a suspender a distribuição do chamado “kit anti-homofobia” em escolas públicas em 2011. A campanha trazia material destinado a sensibilizar alunos do ensino médio a respeito da diversidade sexual e de gênero.

A ofensiva atual, portanto, não é nova e ilustra um contexto no qual a educação tem sido um campo de batalha, alimentado com combustível religioso. Em 2002, o governo do Estado do Rio de Janeiro promulgou uma lei tornando obrigatório o ensino religioso nas escolas estaduais. Desde então, embora a matrícula seja facultativa e as escolas sejam obrigadas a oferecer alternativa pedagógica aos alunos que não se submetam ao ensino religioso, a prática tem sido disseminada sem alternativas, conforme lembra a socióloga Amanda Mendonça. É nesse contexto de aproximação entre religião e educação que, recentemente, a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro distribuiu uma cartilha, chamada de “Manual de Bioética”, para professores de ensino religioso (ao lado, uma das imagens da publicação). No material, lê-se que “a teoria do gênero supervaloriza a construção sociocultural da identidade sexual, opondo-se à natureza, gerando um novo modelo familiar e uma nova organização da sociedade”. O texto afirma ainda que “a maternidade é parte constitutiva de uma identidade feminina”, atrela o gênero ao corpo biológico e condena o aborto, mesmo nos casos de estupro.

A cartilha foi criticada por entidades de direitos humanos. Medidas como essa, assim como o recuo no Plano Nacional de Educação, constituem um retrocesso no combate à desigualdade. No cotidiano, tais desigualdades estão materializadas nos índices de crimes homofóbicos, que em 2011 foram 6.809 no Brasil, conforme a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, e de violência de gênero. A cada dia, 15 mulheres são assassinadas e sofrem diversas formas de discriminação. Essa preocupação é compartilhada por parlamentares e especialistas, que apontam a infância como momento central na formação de representações preconceituosas, e concretizada em outros países, como a Alemanha, onde a abordagem da temática de gênero e diversidade sexual é uma política educacional: uma cartilha que fala sobre a relação entre pessoas do mesmo sexo é distribuída (confira imagem acima) em escolas com linguagem inclusiva, sem preconceitos e aberta às diferenças.

Sem associar direta ou necessariamente tais violências a causas religiosas, é importante não perder de vista o contexto político e social em que as mesmas são geradas. Por isso, parlamentares comprometidos com os direitos humanos lamentaram o recuo no PNE, lembrando o papel fundamental da escola na superação de preconceitos e estigmas. “Temos um conflito em evidência: religião e educação. A escola é espaço fundamental de socialização, de disseminação de valores e concepções morais. Entende-se o porquê do incômodo que o PNE em sua versão original despertava: representava um desafio a uma ordem de gênero e sexual regida por disciplina e controle. Por isso, a preocupação em firmar terreno na política educacional. Lamentavelmente, o texto aprovado é um retrocesso, pois não contribui para uma educação reflexiva e inclusiva”, afirma a socióloga Amanda Mendonça.

Leia aqui a nota do grupo Ser-tão (Universidade Federal de Goiás) condenando o recuo no PNE, que agora segue para votação no plenário da Câmara, de onde será encaminhado para sanção da presidente Dilma Rousseff.

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