Pode uma mulher governar?, por Carla Rodrigues

24 de maio, 2016

(Folha de S. Paulo, 24/05/2016) Pode o subalterno falar? Não, responde a filósofa indiana Gaiatri Spivak num ato perfomativo em que, ao dizer não, já está problematizando a interdição da voz subalterna e dando início a um importante debate sobre pós-colonialismo e gênero. Para pensar os retrocessos de gênero no Brasil, em particular, e na América Latina, em geral, faço uma analogia a esta pergunta –  “pode uma mulher governar?” – para, com Spivak, responder não. O impeachment da presidenta Dilma Roussef é a demonstração da resposta negativa a essa pergunta.

Dilma não é a única mulher no continente a ser posta diante de crises políticas entrelaçadas por discriminação de gênero, misoginia, e preconceito contra o exercício de poder feminino. Reportagem do New York Times traça um paralelo entre Dilma, Cristina Kirchner e Michele Bachelet. As três mulheres que chegaram ao poder num momento em que parecia haver alguma chance de superação das arraigadas hierarquias entre homens e mulheres na América Latina. Exatamente por isso estão sob ataque. Trata-se de pensar que as forças conservadoras crescem e se articulam – nacional e internacionalmente – ao mesmo tempo em que percebem o avanço de forças progressistas, como um jogo de forças ativas e reativas em movimento permanente.

No início dos anos 1990, a feminista norte-americana Susan Faludi publicou “Backlash”, livro em que identificava as inúmeras formas de retrocesso em relação aos avanços no campo feminista desde os anos 1960 (para uma excelente recuperação desta história, ver “She’s beautiful when she’s angry”, documentário em cartaz no Netflix). O diagnóstico de Faludi passa por capas de revista – a famosa edição da Newsweek que, em 1986 informava que aos 35 anos, uma mulher com diploma superior teria apenas 5% de chance de casar –, e pela percepção de que estaria em curso um movimento de “volta ao fogão”, na já batida estratégia que lugar de mulher é em casa.

A recente campanha #belarecatadaedolar expressou, de certa forma, esse jogo de forças ativas e reativas. Em contraposição à presidência da República exercida por uma mulher, uma revista semanal veiculou perfil da mulher do presidente interino Michel Temer, cujos atributos eram os mesmos que nos fariam voltar alguns séculos ao passado. Beleza para agradar o marido, comportamento domesticável, em ambiente familiar e caseiro. A reportagem fez eclodir um tipo de revolta muito parecida com as manifestações de repúdio ao texto da Newsweek que motivou Faludi a perceber os retrocessos na sociedade norte-americana.

Penso que no caso do Brasil e da América Latina, o mais grave do nosso “backlash” está no fato  de que mesmo os mínimos avanços produzem reações muito violentas. Apesar de anos de luta, o movimento de mulheres ainda não conseguiu a descriminalização do aborto. Pequenas conquistas, como o fim da obrigatoriedade do registro de boletim de ocorrência para interrupção de gravidez em caso de estupro, estão ameaçadas pela ação danosa do deputado Eduardo Cunha. No âmbito estadual, foi preciso uma grande mobilização para impedir a aprovação de uma lei que obrigaria profissionais de saúde do Estado do Rio de Janeiro a notificar a polícia sempre que uma mulher chegasse a um hospital com complicações pós-aborto.

Neste contexto de pequenas conquistas e grandes retrocessos, Dilma esteve sob ataque desde o início do seu primeiro mandato. Sofreu críticas por não se adequar ao estereótipo do feminino e deputados acharam cabível chamar a chefe de estado por denominações grosseiras como “jararaca”. De certa forma, é como se sua figura austera tivesse encarnado a abjeção da sociedade brasileira em relação a uma mulher no poder. Insistentemente, ela buscou responder “sim, pode uma mulher governar”, e a cada sim produziu mais e mais reações contrárias ao seu lugar de poder. Talvez ainda estivéssemos num jogo de forças menos desigual, num retrocesso menos perturbador do que esse com o qual nos ameaçam os homens brancos que tomaram o poder (http://www.blogdoims.com.br/ims/o-mundo-se-divide). Não em nome do combate à corrupção, como ficou evidente e inegável depois da veiculação das conversas do senador Romero Jucá, mas em nome daquilo que o filósofo Jacques Rancière percebe como sendo o “ódio à democracia”: tomar o poder pelo poder, a fim de representar apenas seus próprios interesses.

*Carla Rodrigues é professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio). É coordenadora do laboratório de pesquisa Escritas – filosofia, gênero e psicanálise.

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