Crítica: ‘A revolução das mulheres’ e a luta contra o silêncio da história

20 de maio, 2017

Obra reúne textos sobre emancipação feminina de autoras russas do início do século XX. A resenha é de autoria da jornalista e professora Carla Rodrigues (UFRJ).

(O Globo, 20/05/2017 – acesse no site de origem)

“O ‘dia da mulher’ é um elo da longa e sólida corrente do movimento de mulheres trabalhadoras. Ele está crescendo, o exército organizado das trabalhadoras aumenta a cada ano.” Este pequeno trecho de uma notícia de jornal poderia ter sido publicado no Brasil depois do último 8 de março, quando as mulheres estiveram nas ruas em inúmeras capitais do país, juntando suas vozes de protesto a outras mulheres que, em diferentes idiomas, ocuparam as ruas, as praças, as universidades no mundo, e fizeram do “dia da mulher” um exemplo de mobilização e luta. Embora seja um texto de jornal, foi extraído do “Pravda”, o principal jornal da União Soviética, em 1913, mostrando que, mesmo separadas por mais de cem anos, as lutas das mulheres russas pré-revolução se encontram com as marchas feministas do século XXI. O livro “A revolução das mulheres — Emancipação feminina na Rússia soviética” (Boitempo Editorial), organizado por Graziela Schneider, mostra como essa linha histórica, ideológica e política une feminismo e transformação social para além de fronteiras geográficas e temporais.

A união não é autoevidente, sobretudo considerando as influências do feminismo liberal norte-americano nas pautas da segunda onda do feminismo no Brasil, o que só reforça a importância da obra de Schneider. Tradutora de russo para o português, pesquisadora de literatura russa na USP, Schneider faz um impressionante trabalho de recuperação histórica da ligação entre luta de mulheres e luta socialista. Sua pesquisa traz dez autoras russas que contribuíram tanto para o debate teórico quanto para a militância política na Rússia soviética do início do século XX. Da coletânea, vale destacar, por exemplo, os textos de Inessa Fiódorovna Armand, cujo pensamento sobre “a questão da mulher” se dá em ligação direta com as ideias que gestaram a Revolução de Outubro de 1917. Entre 1919 e 1920, Inessa comandou o departamento de mulheres do Comitê Central do Partido Comunista e fez parte da organização da I Conferência Internacional das Mulheres Comunistas. O resgate de seus escritos políticos é uma forma de reconhecer a importância da luta das mulheres nas mudanças sociais e de reforçar sua por vezes insistente atualidade, como no trecho: “O trabalho feminino se ajustou ao capitalismo exatamente como o trabalho mais barato, mais humilde, e os proprietários, na sua luta contra os trabalhadores, utilizavam o trabalho feminino como um meio de piorar as condições de trabalho ou de mantê-las no patamar anterior”. Escrito por Inessa na Rússia de 1920, expõe uma percepção que também poderia ser lida, por exemplo, no artigo da norte-americana Nancy Fraser, “O feminismo, o capitalismo e a astúcia da História”, arguto diagnóstico de como a precarização do trabalho das mulheres foi decisiva para a expansão do modelo capitalista neofordista.

Tantas afinidades temporais e temáticas servem ainda para fazer de “A revolução das mulheres” uma obra para enfrentar aquilo que a historiadora francesa Michelle Perrot chamou de “o silêncio da História”, referindo-se às mulheres, aos operários e aos prisioneiros. Na sua imensa contribuição para a historiografia feminista, Perrot abriu muitos caminhos, inclusive para o surgimento de obras como a de Schneider, a ser lida como uma crítica à História universal como uma narrativa exclusivamente protagonizada e escrita por homens. Nesse sentido, o livro faz o que se poderia chamar de duplo trabalho, ao recuperar do ostracismo mulheres e operárias e dialoga com o premiado “A guerra não tem rosto de mulher”, de Svetlana Aleksiévitch, responsável por ouvir mulheres russas atuantes na Segunda Guerra mundial e romper com o silêncio de mais esse front feminino. Prova de que, quanto mais se conta a história das mulheres, mais histórias há para contar.

Carla Rodrigues é professora de Ética no Departamento de Filosofia da UFRJ.

“A revolução das mulheres — emancipação feminina na Rússia soviética”
Autor: Graziela Schneider (org.)
Editora: Boitempo
Páginas: 276
Preço: R$ 53
Cotação: Ótimo

 

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