‘Tsunami feminino’ se fortalece nas ruas e nas urnas, de olho em eleições legislativas de novembro
(O Globo, 28/01/2018 – acesse no site de origem)
A estudante Carly Schaffer, de 20 anos, nunca se interessou por política. “Sempre achei tudo chato”. Agora, é a mais animada da turma de amigas quando se trata do tema: fez cartazes, acordou cedo no sábado da semana passada e foi para a Marcha das Mulheres em Washington, que reuniu cerca de cem mil pessoas contra o governo de Donald Trump no dia de seu primeiro aniversário de governo. Mas ela não se deu por satisfeita: conta os dias para votar em mulheres nas eleições legislativas de novembro, da mesma forma que sonha com uma Casa Branca feminina a partir de 2020.
— Olhe para isso! São vozes que no passado ficavam caladas. E que não vão mais voltar atrás. A política americana nunca mais será a mesma — disse ela, com um cartaz defendendo a candidatura da apresentadora Oprah Winfrey em uma das mãos e com frases de incentivo à participação feminina da senadora-sensação Kirsten Gillibrand (Nova York, uma das presidenciáveis dos democratas) na outra.
O que está fazendo a estudante e outras milhares de mulheres no país se interessarem por política, segundo analistas, não é apenas o governo de Donald Trump, que tem acusações de assédio sexual no currículo e o Gabinete mais masculino desde Ronald Reagan. Mas um movimento de gênero que já chegou a diversos pontos da sociedade americana e que deve ser determinante nas eleições. O republicano apenas turbinou isso.
— As mulheres estão lutando por seu espaço há muito tempo, mas o governo de Trump deu uma urgência para a questão — afirmou ao GLOBO Kelly Dittmar, professora de ciências políticas da Rutgers University-Camden e pesquisadora do Centro Americano de Mulheres e Política (CAWP, na sigla em inglês). — Na verdade, vemos que a política está atrasada em relação a outros setores da sociedade. Nada mais natural que mudar esta realidade.
Dados do Banco Mundial e do Inter-Parliamentary Union comprovam a tese: os Estados Unidos estão na 99ª posição em participação feminina no Legislativo, em uma lista de 187 nações. Apenas 19,4% dos membros da Câmara dos Representantes são mulheres, patamar inferior à maioria das nações europeias e muitos países latinos (México, incluído) e muçulmanos (como a Arábia Saudita e Emirados Árabes). O peso feminino é inferior até a muitos dos “países de merda” supostamente citados por Trump em uma negociação parlamentar, como El Salvador e diversas nações africanas — embora ainda fique acima do Brasil, na 157ª posição com 10,7%, e de Japão e Coreia do Sul.
Mudança já começou na Virgínia
Analistas estimam que este ano deverá ter cerca 50 candidatas ao Senado e mais de 400 à Câmara em novembro, um recorde.
— As mulheres votam mais que os homens, mas não concorriam a cargos públicos, devido ao machismo. Há uma nova conscientização — disse Donna Lent, presidente do National Women’s Political Caucus (NWPC). — Mas mais importante que a tentativa de grandes cargos é a mobilização local.
E os números dizem que isso está ocorrendo. Além das marchas, mais mulheres procuram grupos de atuação e treinamento para candidaturas. De acordo com o Emily’s List, organização de engajamento feminino, há 30.768 inscritas em seus treinamentos para candidatos. Em 2016, apenas 926 mulheres passaram por seus cursos. As eleições estaduais da Virgínia, em novembro passado, já mostraram sinais de mudança: foram eleitas 21 mulheres para o Legislativo local, contra 46 homens, no melhor resultado na história local. Elas conquistaram dez cadeiras a mais que nas eleições anteriores — incluindo a primeira deputada transgênero no país e a primeira assumidamente lésbica do estado.
— Não se trata de uma onda, é algo maior. O que está se movendo são placas tectônicas, é algo profundo. É uma tsunami — afirmou Beatriz Cuartas, doutora em política pela George Mason University. — O que estamos vendo na política é algo que se relaciona com toda a sociedade. O movimento #metoo (denúncia de assédio sexual) é um exemplo. Práticas que eram toleradas há 10 anos não são mais aceitas. É uma mudança de paradigma.
E a candidatura feminina é, majoritariamente, democrata. Além do fator Trump, outros pontos afastam as mulheres do Partido Republicano.
— Os democratas abraçaram os direitos reprodutivos das mulheres, como o aborto — disse Donna Lent. — A posição mais conservadora dos republicanos dificulta essa aproximação. As mulheres tendem a defender mais projetos sociais, a equidade, enquanto que republicanos são mais pró-mercado.
Kelly Dittmar, da CAWP, concorda, e lembra que a posição do atual governo contra minorias aproxima mais as mulheres, que sempre foram discriminadas, dos democratas. Ela aponta três motivos pelos quais é bom o aumento da participação feminina nas eleições e nos cargos de governo:
— O primeiro é a legitimidade democrática, vivemos um problema de representação com a baixa participação das mulheres, que são 50% da população. O segundo é simbólico, mais mulheres atuantes incentivam novas gerações e outros grupos sociais. E por último há a mudança de perspectiva na política, as mulheres possuem olhares diferentes, prioridades diferentes. Em geral, buscam mais a igualdade e visão mais diversa do mundo — disse ela, autora de livros sobre mulheres na política.
Se em 2016 os EUA viram a primeira candidata à Presidência por um grande partido, com Hillary Clinton, 2018 e 2020 podem mostrar que elas podem, de fato conquistar o poder. Mobilização é o que não falta.
Henrique Gomes Batista