(O Estado de S. Paulo) Em entrevista exclusiva concedida em Genebra ao Estadão, Michelle Bachelet, ex-presidente chilena e diretora executiva da ONU Mulheres, fala de direito ao aborto, trabalho para as mulheres e desenvolvimento e sobre a importância da eleição de Dilma Rousseff para a América Latina.
Sim ou não ao direito ao aborto é limitar o debate
“Uma sociedade não pode se limitar a debater apenas se as mulheres têm ou não o direito de abortar, pensando que isso seja a resposta para a defesa dos direitos das mulheres. (…) A realidade é que, quando a medida é o aborto, isso significa que estamos chegando tarde demais. O aborto significa que não se conseguiu evitar uma gravidez indesejada, não houve educação suficiente, não se utilizou mecanismos de prevenção que sabemos que são eficientes nem houve planejamento”
Planejamento familiar e educação sexual são fundamentais para a prevenção da gravidez indesejada
“Bachelet ressalta que o planejamento familiar deve ser reforçado junto com a criação de uma estrutura que possibilite que a gravidez indesejada seja evitada.”
Para promover mudanças, paz e desenvolvimento é preciso trabalho e maior autonomia econômica para as mulheres
“Michelle Bachelet declara que seu programa de governo à frente da nova organização é claro: maior autonomia econômica para que as mulheres tenham o poder de decisão. A ONU Mulheres considera fundamental incentivar as condições para que a mulher obtenha sua independência econômica, saia da submissão e tenha melhores ferramentas para sua decidir sobre sua vida.”
A importância da eleição de Dilma Rousseff para a América Latina
“Estou muito contente que tenhamos mais uma presidente na América Latina e ainda mais que seja no Brasil. Chegamos para tomar decisões para sempre – e todas as decisões, não só as fáceis e simples. Por isso, o Brasil ter uma mulher presidente é de tremenda importância. Isso dará visibilidade ao fato de que mulheres em todo o mundo devem ter melhores condições e ser vistas como atores que decidem.”
As mulheres nos processos de paz
“Diante de desastres naturais, como no Haiti ou no Chile, foram as mulheres que se organizaram e evitaram o caos. Por isso, vamos batalhar para que mulheres tenham espaço nas mesas de negociação de processos de paz. Dos 685 processos de paz que a ONU acompanhou pelo mundo em 60 anos, apenas 16 deles mencionam a necessidade de lutar contra a violência sexual contra as mulheres.”
Veja a seguir a integra da entrevista:
“Para a ex-presidente chilena e 1ª diretora executiva da ONU Mulheres – que reunirá políticas de promoção de direitos -, planejamento familiar e educação sexual são fundamentais
Jamil Chade – O Estado de S. Paulo
Uma sociedade não pode se limitar a debater apenas se as mulheres têm ou não o direito de abortar, pensando que isso seja a resposta para a defesa dos direitos das mulheres. Quem faz o alerta é Michelle Bachelet, a primeira diretora executiva da ONU Mulheres, entidade que será criada a partir de 1.º de janeiro para reunir em um só organismo todas as políticas de promoção dos direitos do sexo feminino.
Em entrevista exclusiva ao Estado, durante visita a Genebra, a ex-presidente do Chile insiste que o planejamento familiar deve ser reforçado junto com a criação de uma estrutura que possibilite que a gravidez indesejada seja evitada. Mas afirma que o Estado deve deixar a cada mulher a opção da escolha e cada uma optará dependendo de seus próprios valores e culturas. “O Estado não tem o direito de impor nada”, diz. Médica, ela declara que seu programa de governo à frente da nova organização é claro: maior autonomia econômica para que as mulheres tenham o poder de decisão.
Bachelet deu conselhos à presidente eleita Dilma Rousseff e deixou claro: as mulheres chegaram para ficar na política latino-americana “e não só para tomar decisões fáceis”. A chilena entrou para a história como a primeira presidente mulher da América do Sul e a primeira ministra de Defesa.
Sua trajetória foi marcada por brutalidades que, segundo ela, até hoje formam seu caráter. Seu pai, um militar, foi assassinado pela junta em 1973 ao se opor ao golpe de estado no Chile. Bachelet e sua mãe foram presas e torturadas. Décadas depois, ao voltar ao Chile, foram morar no mesmo prédio onde vivia um de seus torturadores e não era raro se encontrarem.
A agenda de defesa dos direitos das mulheres é um dos assuntos mais complexos e envolve religião, machismo, saúde, poder e renda. Qual será a prioridade da sra.?
A ONU Mulheres considera fundamental incentivar as condições para que a mulher obtenha sua independência econômica, saia da submissão e tenha melhores ferramentas para sua decidir sobre sua vida. Na medida em que a mulher tenha a capacidade de ter trabalho, ser empreendedora e gerar renda, responderá melhor às necessidades de sua família. Mas nosso objetivo não é ver as mulheres apenas como vítimas. Elas são essenciais para fazer avançar suas famílias, para promover mudanças e ser fatores de paz e desenvolvimento. Diante de desastres naturais, como no Haiti ou no Chile, foram as mulheres que se organizaram e evitaram o caos. Por isso, vamos batalhar para que mulheres tenham espaço nas mesas de negociação de processos de paz. Dos 685 processos de paz que a ONU acompanhou pelo mundo em 60 anos, apenas 16 deles mencionam a necessidade de lutar contra a violência sexual contra as mulheres.
No Brasil, a campanha eleitoral foi marcada pelo tema do aborto. A sra. defenderá ou não o aborto em seu cargo na ONU?
Não há uma resposta simples. Primeiramente é preciso uma política que dê direitos às mulheres. Direito à saúde sexual e reprodutiva. Essas políticas devem levar em conta um conjunto enorme de elementos, que vão desde a educação sexual e até a planificação familiar. Cada país, a partir de suas culturas e tradições, deverá ver como equacionar esses temas à sua política.
Mas como fazer isso na prática?
Em alguns países, isso pode incluir o direito de decidir. Em outros, aceita-se o uso de anticoncepcionais e pílulas do dia seguinte. Cada nação deve pesar o que as forças políticas e sociais determinam para definir à qual nível de profundidade se pode chegar em suas políticas de saúde da mulher. Mas a realidade é que, quando a medida é o aborto, isso significa que estamos chegando tarde demais. O aborto significa que não se conseguiu evitar uma gravidez indesejada, não houve educação suficiente, não se utilizou mecanismos de prevenção que sabemos que são eficientes nem houve planejamento. Portanto, o debate da saúde da mulher deve ir muito além da questão do aborto. Precisamos de planejamento e também oferecer opções. Com ou sem aborto, vemos que as taxas de mortalidade materna são altíssimas e não podemos aceitar isso. Planejamento familiar e educação sexual fazem parte dos instrumentos para evitar essas mor tes.
Qual deve ser o papel do Estado em estabelecer leis que proíbam ou não o aborto?
As políticas de saúde vão variar de país para país. O que não se pode colocar em dúvida é a obrigação do Estado de oferecer alternativas às mulheres. Não se pode impor soluções às mulheres. São as mulheres que devem escolher o instrumento que querem usar para garantir sua saúde sexual e reprodutiva, dependendo de seus próprios valores – se optarão pela abstinência ou planificação ou outro método. O Estado não tem o direito de impor nada. Precisa é garantir opções e alternativas. Quais opções, é uma questão que cada sociedade deve decidir.
A eleição de uma mulher presidente no Brasil é a quarta na região.
Isso segue uma tendência de avanço nos direitos das mulheres na América Latina?
Estou muito contente que tenhamos mais uma presidente na América Latina e ainda mais que seja no Brasil. Chegamos para tomar decisões para sempre – e todas as decisões, não só as fáceis e simples. Por isso, o Brasil ter uma mulher presidente é de tremenda importância. Isso dará visibilidade ao fato de que mulheres em todo o mundo devem ter melhores condições e ser vistas como atores que decidem. Isso contribui para mudar uma cultura de acreditar que as mulheres são cidadãs de segunda classe. Na América Latina, já tivemos mulheres governando no Chile, Costa Rica, Argentina. Mas o Brasil está participando de fóruns políticos mais restritos e de mais alto nível. Que seja agora uma mulher que represente isso tudo pode ser muito importante.
A sra. sofreu discriminações ao governar?
Apesar de haver machismo no Chile, isso não foi um obstáculo para minha eleição. Mas, na hora de iniciar o trabalho de presidente, encontrei o fato de que a política e seus códigos tradicionais são masculinos.
A sra. daria alguma recomendação para Dilma para superar esses obstáculos?
O mais importante para Dilma, como presidente, é ser genuína e ir adiante com seu programa – que seja o mesmo que se comprometeu durante a campanha. Como a primeira mulher presidente do Brasil, isso significará uma mudança importante na forma de relacionamento do governo. Paradigmas que poderiam parecer normais terão de mudar e, no período de mudança, pode haver interpretações equivocadas sobre suas atitudes. Nem sempre se pode entender certas atitudes, pois são distintas. Não porque são melhores ou piores. Mas, finalmente, o que as pessoas olharão é se ela cumpriu com os compromissos que adotou em sua campanha. Dilma manterá muitas das políticas adotadas pelo atual governo e todos sabemos que ela foi uma peça importante nessa administração. Mas tenho certeza de que ela colocará também seu próprio selo no governo. Eu fui ministra antes de assumir a presidência. Mas, ao chegar ao cargo de chefe-de-Estado, eu também i mprimi minhas prioridades.
O Brasil tem uma política de diálogo com o Irã, país onde a situação da mulher é bastante delicada. Como gerenciar uma relação de diálogo e, ao mesmo tempo, cobrar por mais direitos às mulheres?
É possível ter uma posição de diálogo e de abertura. Isso permite que possa haver alianças em temas considerados mais preocupantes. O diálogo nunca é sinônimo de compartilhar todos os valores e princípios. O diálogo não inibe a possibilidade de seguir avançando. Há entidades que têm a função de condenar. Mas as estratégias podem ser variadas e é possível trabalhar também para a busca de soluções concretas por meio do diálogo.
Mas como lidar com um governo e leis que ainda preveem o apedrejamento de mulheres por adultério?
Nesse caso, a voz da comunidade internacional se fez ouvir. Parte da mudança da sentença (de Sakineh Ashtiani) e a suspensão dela foi graças à voz da comunidade internacional. Eu mesmo fiz um chamado para impedir a morte dessa mulher em condições tão dramáticas, que preocupam nossas consciência. Parece que essa voz foi ouvida.
Dilma, quando for ao Oriente Médio, deve ou não cobrir a cabeça?
O respeito em termos culturais deve ser mútuo. Trabalhamos com países com culturas diferentes e precisamos respeitá-las, na medida em que certos direitos básicos sejam respeitados. Mas também as características e condições culturais do interlocutor devem ser respeitadas. A relação de respeito mútuo é o segredo para avançar.”
Acesse essa entrevista na íntegra: ‘Debate da saúde da mulher deve ir além do aborto’ (O Estado de S. Paulo – 05/12/2010)