(Marie Claire, 30/07/2016) Primeira mulher a ocupar o cargo, ela recebeu Marie Claire no Palácio da Alvorada para uma entrevista em que admitiu ter cometido erros políticos, inclusive na falta de medidas feministas. Falou também sobre suas maiores dores pessoais: a morte do pai, a tortura, o câncer. Disse que tem dificuldade de chorar em momentos extremos e quer deixar, como contribuição para a história, a força da resistência feminina
O Brasil será um país diferente no fim deste mês, depois que o Senado decidir se Dilma Rousseff deve, ou não, deixar definitivamente a Presidência da República.
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Marie Claire foi a primeira revista feminina a falar com a primeira presidente mulher do Brasil. O ano era 2009 e Dilma, então ministra da Casa Civil do governo Lula, despontava como a provável sucessora do presidente da República. Sua candidatura não tinha sido anunciada e, naquela conversa, ela se apresentou como uma defensora da legalização do aborto, dizia que sentia culpa de sair para trabalhar e deixar a filha, Paula, em casa quando a menina era pequena e se enchia de orgulho ao detalhar sua atuação contra a ditadura militar. Sete anos, dois mandatos presidenciais e um processo de impeachment depois, Marie Claire voltou a falar com a presidente (afastada) da República.
Dilma recebeu nossa equipe no fim do mês de junho, no Palácio da Alvorada. Na garagem, duas bicicletas remetiam à moradora. Ao entrar em uma ampla sala de conferências onde a aguardávamos, a mineira de 68 anos vestia preto, meias finas, sapato de salto baixo, trazia um olho grego no pulso esquerdo, bijuterias douradas, e agiu como de hábito. Foi
dura com um funcionário que interrompeu a entrevista. “Presidenta, ganhamos em Porto Alegre”, disse ele na porta da sala, com relação à medida que devolvia a Dilma o direito de usar, ainda que com restrições, um avião das Forças Armadas do Brasil para se locomover pelo país. “E o que é que você quer que eu faça com essa informação?”, respondeu. “É que é uma boa notícia, presidenta”, justificou-se o assessor. “Ocê sabe que eu não ligo muito para essa coisa”, rebateu ela.
Durante a conversa, Dilma estava relaxada e bem-humorada. Falou sobre política mas esquivou-se de responder às dúvidas que rondam sua campanha na operação Lava Jato. Admitiu que cometeu erros políticos – da aliança com Michel Temer à demora em agir diante da resistência de parlamentares, então aliados, no Congresso. Indagada sobre aborto e equiparação salarial entre gêneros, fez um mea-culpa.
Da vida pessoal, lembrou a morte do pai (o advogado búlgaro Pedro Rousseff, falecido em 1962), a maior dor de sua vida. Riu das puladas de cerca do ex-marido, Carlos Araujo, seu amigo até hoje e com quem foi casada por 30 anos, e disse que, afastada do governo, pôde ficar mais perto da filha, Paula, 37 anos, e dos netos, Gabriel, 5 anos, e Guilherme, 6 meses, que vivem em Porto Alegre. A seguir, os melhores trechos da conversa.
Marie Claire – A senhora foi a primeira presidente mulher do país e ficou no poder cinco anos e meio. Por que não trouxe para o debate a questão da equiparação salarial e do aborto?
Dilma Rousseff – Cumprimos a legislação e levamos o SUS a fazer o aborto previsto em lei: quando a gravidez coloca em risco a vida da mãe, em caso de estupro e por anencefalia, o que já é dificílimo no Brasil. Não é papel do Estado brasileiro discutir a lei. Quem tem que colocar essa matéria em discussão é o movimento feminino. A grande questão nesse período foi a violência contra mulher, de estupro a assassinato. Ganhamos a Lei Maria da Penha novamente, que havíamos perdido, fizemos a Lei do Feminicídio – que tornou crime hediondo e inafiançável o assassinato da mulher pelo fato de ser mulher – e as Casas da Mulher Brasileira, que são centros de assistência e acolhimento a vítimas de violência. Além disso, quem recebe o Bolsa Família é a mulher, quem é dono do imóvel no Minha Casa Minha Vida, prioritariamente, é a mulher. É uma segurança e uma riqueza. Agora, vocês têm razão, a discussão do trabalho igual para salário igual cabe sim. É algo que tem que ser feito. Nesse sentido, atuamos na PEC das Domésticas. Nós regulamentamos a maior profissão feminina que existe hoje no Brasil e demos a ela o direito de receber contribuição.
MC – A presidente do Chile, Michele Bachelet, em seu primeiro mandato (2006-2010), criou uma lei que dava estímulo fiscal para empresas que pagavam salários iguais para homens e mulheres. Isso poderia ser feito no Brasil?
DR – Acho que sim. Essa hipótese é muito interessante. Tem de ver qual é o custo dela. A questão feminina e da diversidade já é e será uma das que vão mobilizar as pessoas para uma atuação pública. Não é trivial, é tão importante quanto o clima.
MC – Em entrevista à Marie Claire em 2009, a senhora disse que o aborto deveria ser legalizado por ser uma questão de saúde pública. No ano seguinte, em campanha contra o então candidato José Serra, mudou o discurso. Afinal, o que pensa?
DR – Como presidente não posso falar sobre isso. O dia em que sair, dou minha opinião pessoal. Agora, nessa questão, nas condições do Brasil hoje, não cabe ao Estado interferir na lei.
MC – Mas o Estado interfere na medida em que proíbe a mulher de arbitrar sobre o próprio corpo.
DR – O espaço de debate é o Parlamento ou o Judiciário. No Brasil, há uma visão do Estado de que é algo que você acorda de manhã e fala: vou mudar isso. Na democracia não é assim.
MC – A sua chegada à Presidência e o fato de ter nomeado nove ministras foram considerados avanços para o movimento feminista. A sua saída representa um retrocesso?
DR – Não. Tenho tido o cuidado de mostrar que, mesmo quando nos atacam, temos coragem para resistir. O que vivi foi reflexo de uma grande misoginia. Ou eu era muito dura e por isso não me abatia, ou vivia no mundo da lua. A mulher é sempre histérica ou descontrolada. Se você não é nenhuma dessas coisas, é um trator, não uma mulher. Isso é machismo. A mensagem por trás disso tudo é a de que a mulher é frágil. Se fosse um homem, diriam: “Ele é firme”. Tenho de mostrar que coragem não nos falta. Acho que minha missão [de vida], além de lutar pela democracia, é deixar claro que a mulher, nas piores condições, não se curva nem se entrega. Não tenho dúvidas de que queria deixar um legado mais positivo. Mas deixo o legado da resistência feminina. Vou resistir até o último momento. Não pensem que me atemorizam. Não estou embaixo da cama nem morrendo de tristeza, como gostariam. Morro é de injustiça.
MC – Como esse “morrer de injustiça” se manifesta em sua vida?
DR – Ao contrário do que possa parecer, isso me dá mais ânimo. Até por velhice [risos], estou com 68 anos. Não acredito que a vida, na real, seja um lago tranquilo. Enfrentei dois golpes no Brasil e em ambos tive uma participação efetiva. No primeiro, lutei e fui presa por três anos. Agora, estou resistindo. Também tive um câncer [linfático]. Sempre achei que a boa vida é feita de lutas que valem a pena. Claro que todo mundo fantasia: vai chegar uma hora que vai ser mais fácil, mas não é.
MC – Dá para dizer que algumas dessas situações que a senhora enumerou são piores que outras?
DR – [Faz uma pausa e pensa]. A ditadura. A tortura e a prisão daquela forma tiram a dignidade. [Os torturadores] te impõem dor para arrebentar sua dignidade. A doença, de certa forma, também faz isso, mas dentro da sua humanidade, não tentando te tirar a dignidade.
MC – Quando foi que a senhora percebeu que o presidente interino, Michel Temer, deixou de ser seu aliado?
DR – Quando ele começou a se manifestar, a fazer suas cartas e declarações. Era tudo muito óbvio. Lamento muito que ele tenha usado a estrutura da vice-presidência para percorrer o Brasil inteiro articulando uma conspiração. Fazendo um paralelo com a situação atual: sou presidente eleita, tenho todo o direito de usar o avião [das Forças Armadas do Brasil]. Quem não tinha o direito de usar o avião para ir a todos os estados conspirando contra mim era ele.
MC – Quando Temer escreveu aquela carta descrevendo seus ressentimentos, a senhora o chamou para uma conversa. O que disse?
DR – Eu não marquei uma reunião. Quem marcou foi ele.
MC – Como foi a conversa?
DR – De praxe. Vocês conhecem a conversa de praxe?
MC – As nossas conversas de praxe são diferentes das da senhora…
DR – Eu ainda não conhecia a conversa de praxe de vice usurpador e traiçoeiro, mas é aquela conversa mole… “Não foi bem isso”, “Aquilo era uma carta pessoal, vazou”. Mas não foi vazamento, né? Foi um autovazamento…
MC – Descreva a noite em que a Câmara dos Deputados aceitou seu processo de impeachment. É verdade que pediu que consolassem Lula? E a senhora, precisou de consolo?
DR – As pessoas sentem as coisas de jeitos diferentes e temos de respeitar isso. O presidente Lula tem uma imensa sensibilidade e afetividade. Pedi que não o deixassem sozinho, não que o consolassem. Queria que o acompanhassem quando ele foi lá fora [aponta para o grande terraço do Palácio da Alvorada], estarrecido com o que estava acontecendo. Também fiquei chocada porque dá uma vergonha ver aquele discurso chocante. Eu pensava: “O que vão imaginar de nós?”. O povo brasileiro não é aquilo. Por mais erros que tenhamos cometido e defeitos que possuamos, somos muito melhores do que aquelas pessoas que votaram em nome da mulher, do filho, da honra e do caráter de quem foi preso na semana seguinte. Senti um imenso desconforto ouvindo falarem aquelas barbaridades… mais do que desconforto, senti algo que não estou sabendo qualificar [faz cara de nojo].
MC – Enjoo?
DR – Isso, enjoo. Foi muito feio.
MC – A senhora falou “por mais erros que tenhamos cometido”. Quais foram eles?
DR – Eu me recuso a fazer uma coisa que a imprensa adora. Não vou dar chicotadas nas minhas costas. Em qualquer processo humano, a gente erra. Cometi um erro fazendo aliança com meu vice e com todos que o cercam. Houve uma ruptura do pacto que governou o Brasil desde 1988. Partidos com programas mais ideológicos e projetos que ganhavam as eleições faziam um acordo de governabilidade com o centro, que sempre foi democrático. Nos últimos anos, isso mudou. Estou falando de um grupo que tem na figura de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) seu grande dirigente. [A entrevista foi concedida antes da renúnica do ex-presidente da Câmara dos Deputados.] O golpe foi promovido pelo Cunha e entregue para eles, que não tinham condição de fazer golpe. Onde eu acho que fiz um grande erro na política? Quando comecei a ver o mal-estar que estava se instalando. As votações estavam ficando difíceis, as transações também. Assisti à resistência imensa na Lei dos Portos e na Lei do Marco Civil da Internet. Ali estavam claros todos os processos de negociações sombrias. Sempre que a operação Lava Jato chegava mais perto dele [Eduardo Cunha], ele atacava. A gente devia ter percebido que não dava para fazer coligação, compor o governo com eles. Não poderíamos ter nos ligados com quem não estava mais respeitando as negociações nos moldes republicanos.
MC – Seus adversários e aliados dizem que a senhora tem dificuldade de ouvir.
DR – Ouvir o quê? Sei o que querem que eu ouça: negociações que não são republicanas. Não faço isso.
MC – Acredita-se que a delação do empresário Marcelo Odebrecht pode confirmar pagamentos ilícitos que a construtora dele teria feito a João Santana, seu marqueteiro de campanha de 2014. Que consequências isso traria para a senhora?
DR – Ô, gente, tirando a hipótese de você ter um canal especial transmitindo o que acontece dentro da sala da delação, eu não entendo essa informação. Então, vocês me permitam não responder.
MC – Se a senhora voltar para o governo, quais são seus planos?
DR – Desfazer os danos feitos [pelo governo interino] nos programas sociais. Também acredito que é fundamental que o governo eleito escolha pessoas para além da questão partidária [em sua composição] e olhe este período até 2018 como de reafirmação da democracia.
MC – E, se a senhora não voltar, quais são os planos?
DR – Eu não vou aceitar essa suposição, estou na luta e estarei até o fim.
MC – O seu ex-marido, Carlos Araujo, deu uma entrevista em que contou uma série de casos extraconjugais que ele teve…
DR – [Risos] Faz 30 anos que eu me separei dele, pô, 30 anos! Sei lá o que ele fez ou deixou de fazer. Sabe, acho que a vida é muito complicada para ficar julgando alguém. Não julgo ninguém, não. Ele teve os casos dele, é da vida. Eu me dou muito bem com ele.
MC – Isso era para chegar à pergunta: quais traições são perdoáveis e quais não?
DR – Não tem regra. Cada um resolve, é de foro íntimo. Tinha um cara que falava que é de forno íntimo [risos].
MC – A senhora tem mais tempo livre?
DR – Nem tanto. É parecido com o que tinha antes. Tenho ido mais ao Rio Grande do Sul, nos fins de semana, ver meus netos [Gabriel, 5 anos, e Guilherme, 6 meses]. Mas também os via quando vinham para cá.
MC – É verdade que a senhora acorda às 5h30 da manhã para pedalar, volta e começa a despachar?
DR – Não, não. Eu volto, tomo banho, café, leio jornal, blog. Sou normal [risos]. Estava levantando às 5h30 quando o dia começava às 6h. Hoje começou às 6h38, comecei a andar de bicicleta às 6h50. A bicicleta deixa a gente muito feliz da vida.
MC – Tem outros hobbies?
DR Gosto muito de séries e filmes. Gostei de Downtown Abbey, acho a House of Cards americana chatérrima. Gosto de Doc Martin e The Midwife, sobre enfermeiras. Vi um filme de que gostei muito, Os Filhos da Meia-noite. Assista.
MC – E outros pequenos prazeres?
DR – Se alguém acender um charuto ou um cachimbo perto de mim, tenho de me controlar para não sair atrás da fumaça que nem aqueles personagens de desenho. Parei de fumar cigarro em 1986. Fumava quatro maços por dia.
MC – A senhora diz que não chora em situações extremas. Quando foi a última vez que chorou?
DR – Assisto a filme e choro. Mas situações extremas pessoais?
MC – Pessoais, profissionais.
DR – Mas, nos filmes, você chora porque se projeta. Choro lendo Manuelzão e Miguilim [de Guimarães Rosa]. Choro com criança. Mas, em situações extremas, não choro. Na morte do meu pai demorei muito para chorar. Foi uma das situações mais extremas da minha vida. A maior dor, desesperadora. Quanto mais a barra é pesada, menos choro. Isso não significa que não extravase. Acho que às vezes a gente até somatiza. Duas doenças que tive, acho que foi porque não extravasei. [Além do câncer], tive um problema na tireoide quando meu pai morreu.
MC – A senhora já fez terapia?
DR – Não. Agora li muito Freud viu, querida? O que li de Freud não está no gibi. Aliás, outro dia mostrei minha coleção de livros. Gosto ainda mais deles do que de filmes. Tenho ciúmes e todos os maus sentimentos com meus livros.
MC – Qual é o seu maior medo?
DR – Medo? Olha, não falo porque fico com medo [risos]. É em relação aos meus netos e à minha filha. A gente tem medo de falar nisso. Não gosto nem de pensar.
MC – É verdade que a senhora dorme de sapatos e guarda dinheiro no colchão?
DR – Olha, querida, dormi de sapato bem uns cinco anos da minha vida, vocês nem eram nascidas, no fim da década de 60. Dormia vestida porque, a qualquer momento, tinha que acordar e ir embora. Os caras sempre podiam estar ali. Mas não durmo mais não. E sempre tem um dinheirinho vivo, uai. Isso daí você adquire [risos].
MC – A senhora ainda cuida do cabelo com Celso Kamura?
DR – Kamurete? Nunca vou largar o Kamurete. Minha filha, depois que fiz o tratamento [para curar o câncer], o cabelo cresceu em tufos. Na campanha de 2010, ficaram um tanto desesperados quando começaram a me filmar [risos]. O Kamura reconstruiu meu cabelo. Não vou todo mês. Mês e meio, mês e meio, ele aparece aqui. Eu tinjo meu cabelo.
MC – Sozinha?
DR – Não, peço ajuda a quem estiver por perto para segurar o pote de tinta.
MC – A senhora mora neste palácio enorme. Vai sentir falta?
DR – Nisto aqui ninguém mora. Você usa. O quarto é um horror. Acorda, dá o sinal para o ônibus, sobe e vai no banheiro. Se der fome de madrugada, tem uma geladeira.
MC – Deu vontade de fazer um ovo frito…
DR – Não pode. É um lugar bonito, bom de ver, não de morar. O lugar em que você mora tem que ter dimensões acolhedoras.
MC – A senhora está namorando?
DR – Agora paramos aqui, agora deu.
Marina Caruso
Acesse no site de origem: O desabafo de Dilma Rousseff: “Queria deixar um legado mais positivo para as mulheres” (Marie Claire, 30/07/2016)