Virginia Ferreira, professora da rede pública de Vinhedo, no interior de São Paulo, foi gravada em sala de aula por uma aluna. Ela foi denunciada pelo pai e enfrentou um processo administrativo
Era início do ano letivo e a Escola Municipal Professor Ricardo Junco se preparava para as atividades do mês de março, quando é celebrado o Dia Internacional da Mulher. Algumas semanas antes da data, Ferreira começou a conversar com seus alunos sobre o tema, de modo a prepará-los para as atividades do mês seguinte. Pediu em sua turma de 8º ano que os adolescentes —de idades entre 13 e 15 anos— respondessem um questionário e fizessem uma pesquisa em casa sobre alguns conceitos e correntes históricas do feminismo, abordando alguns estrangeirismos e relacionando a temática com o próprio conteúdo do livro didático, que trata de personagens que atuaram a favor dos direitos civis. “Já nesse processo a diretora me chamou para avisar que havia a queixa de mães de alunos. Pensei que se tratasse da abordagem, não do conteúdo, e me coloquei a disposição para explicar meu trabalho”, recorda Ferreira, em entrevista por telefone ao EL PAÍS. Algumas semanas depois do Carnaval, outra notícia chegou por meio da diretora. “Ela veio me dizer que eu precisava ir na Secretaria de Educação prestar esclarecimentos, porque um pai havia apresentado uma queixa na Ouvidoria”, conta.
Na reclamação, bastante abrangente, o pai dizia que Ferreira usava suas aulas para ensinar sobre feminismo e “ideologia de gênero”. E que usava o português para se comunicar com os alunos. “Mas é claro que uso o português, é a língua mediadora entre o conteúdo que vou trazer e os alunos, que possuem um entendimento heterogêneo da língua inglesa”, justifica. “Minha aula não tem nenhuma estrutura de doutrinação, a gente faz um trabalho de diálogo, de conversa. Busco aproximar o conteúdo dos alunos e problematizar os temas trabalhados. É uma dinâmica já de anos em sala de aula”, afirma. Para a Secretaria, Ferreira argumentou ainda sobre o papel do professor em se fazer uma reflexão sobre a condição da mulher e a necessidade de se combater a violência contra ela, segundo o relato que consta no documento. Ela conta já ter acolhido alunos que choravam por ter visto a mãe sendo agredida pelo pai em casa, ou ainda “casos de alunas que sofreram abuso e violência dentro do próprio lar”.
No 14 de março, o MBL de Vinhedo publicou em sua página no Facebook a gravação que uma aluna —e filha do pai denunciante— havia feito de Ferreira. No áudio, de cerca de um minuto, Ferreira falava sobre a violência psicológica à qual as mulheres geralmente estão submetidas e abordava as correntes históricas do feminismo. Em outro vídeo publicado no Facebook no mesmo mês, o vereador de São Paulo, Fernando Holiday, afirma que a professora “filiada ao PSOL, ao invés de de dar aula inglês, estava dando aula de feminismo”, obrigado os alunos a escutar “aquele verdadeiro proselitismo político”. Ainda no primeiro semestre, Holiday concedeu entrevistas, uma delas ao EL PAÍS, em que fazia uma autocrítica em sua forma de defender o Escola Sem Partido: “A forma que defendi muitas vezes teve como efeito colateral uma demonização do professor, que já é um profissional extremamente desvalorizado pelo Estado e pela sociedade brasileira”.
A postagem com o áudio gravado pela aluna também foi compartilhada pelo vereador Rubens Nunes (MDB), presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Vereadores e autor dos dois projetos —arquivados— que instituíam o Escola Sem Partido em Vinhedo. Ele é também pai de Rubinho Nunes, um dos idealizadores do MBL. Tanto Rubinho como Renan Santos, outro membro fundador do grupo, são naturais de Vinhedo.
“A professora foi contratada especificamente para ministrar aulas de inglês, ou seja, ela recebe dinheiro do pagador de impostos para ensinar Inglês, não a matéria que ela bem entender”, explicou por e-mail o vereador Rubens Nunes. “Na oportunidade, ao invés de ministrar aulas de acordo com o conteúdo programático determinado, ela inseriu tema de acordo com suas convicções pessoais, esquivando-se de sua obrigação, lesando assim um princípio básico da administração pública, o da legalidade”, acrescentou. “É o mesmo que a Prefeitura contratar uma empresa para asfaltar uma rua e a empresa começar a roçar grama”, completou.
Reclamação vira processo disciplinar
A reclamação do pai da aluna ficou no âmbito da Secretaria de Educação nos meses seguintes. Durante esse período de averiguação preliminar, o vereador Nunes solicitou o comparecimento do secretário de Educação Gilberto Lorenzon na Câmara dos Vereadores. Paralelamente, Ferreira buscou o posicionamento do Conselho Municipal de Educação e pediu ajuda ao Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo. A advocacia do município recomendou o arquivamento da denúncia, mas tanto a Secretaria de Educação como a Controladoria Geral do Município concluíram que um processo administrativo disciplinar deveria ser aberto. O processo finalmente foi aberto em agosto e, após seis meses, acabou arquivado nesta segunda-feira, por se considerar que não “houve configuração de irregularidade” Neste período, a professora foi investigada por negligência e corria o risco de sofrer uma punição disciplinar ―a maior delas seria o afastamento de suas atividades. “Participei de todos os depoimentos. Quando depôs, o pai fez uma ameaça velada. Disse ‘eu tenho muita coisa contra essa professora, ela vai ver”, recorda Ferreira.
Em parecer de defesa de Ferreira, o Nudem argumenta que a discussão de gênero no ambiente escolar está em consonância com o que preconiza as convenções internacionais assinadas pelo Brasil e a Constituição Federal. Também condiz com os direitos à educação, à liberdade de cátedra, ao pluralismo pedagógico e, principalmente, com a Lei Maria da Penha —que afirma que uma das formas de prevenção é a discussão dos papéis de gênero. “Entendemos que o que essa professora fez foi debater gênero, e que esse debate é essencial não só por ser determinação legal, mas porque existe uma vinculação entre discriminação das mulheres e violência”, argumenta a defensora pública Nalida Coelho Monte, coordenadora auxiliar do Nudem. O EL PAÍS solicitou um posicionamento da Secretaria Municipal de Educação, que não respondeu.
Uma cidade conservadora
A cidade de Vinhedo, controlada pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) há duas décadas, possui um dos principais IDHs do país e uma população majoritariamente conservadora. Nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro conseguiu cerca de 65% dos votos no primeiro turno e 80% no segundo. “A direita faz uma relação entre doutrinação e grupos de esquerda, que são contrários ao Escola Sem Partido. E, na cabeça deles, falar de violência contra a mulher é uma pauta de esquerda e, portanto, uma doutrinação”, opina Ferreira.
Como ocorreu em outras cidades, a Câmara Municipal de Vinhedo tramitou sua própria legislação do Escola Sem Partido. Essas leis locais vêm sofrendo reveses nos tribunais superiores sob o argumento de que municípios não podem dispor de leis gerais que regulamentam a educação ―o vereador Nunes, que viu seus projetos serem arquivados, afirma que agora “o projeto se tornou pauta federal e deve ser resolvido na esfera federal”.
Ainda assim, a defensora pública Monte afirma que o programa tem prosperado com mais facilidade em cidades menores, onde a proximidade com a escola pública é maior e a vigilância de órgãos do poder público e da imprensa, menor. “A mera existência desses projetos têm gerado esse efeito inibidor em relação ao debate de gênero nas escolas, e principalmente a ideia de que alunos e alunas são vigias dos professores e de que eles podem filmar os conteúdos que são passados com o objetivo de denunciá-los”, argumenta a defensora pública do Nudem. “Os projetos também incentivam um clima de desconfiança entre professores e alunos, além da ideia de que pais têm direito absoluto de gerir educação dos filhos no que se refere a questões religiosas, filosóficas e de educação sexual. Esse falso conflito é o pior efeito”.
Ferreira concorda que a autocensura por parte de professores tem aumentado. “Esses grupos de extrema direita têm uma estratégia. Eles criam uma mentira, desqualificam, acusam, julgam e condenam. Não te dão a menor oportunidade de defesa”, argumenta. “Então o professor pensa: vou passar por tudo aquilo de novo?”.
Ela também acredita que acabou exposta perante os conservadores também pelo fato de estar filiada ao PSOL e de ter atuado em sindicatos de servidores a favor da valorização de funcionários e do serviço público. “Tive uma movimentação intensa de uns anos para cá, mas sempre fora da escola, nunca dentro dela. Se alunos me perguntam se estou filiada, digo que sou e ponto. Mas minha atuação é como cidadã. Não fico fazendo nenhum tipo de apologia, não levo bandeiras nem adesivos. Sabemos que há coisas que não cabem, que não são éticas”, garante. Questionado pelo EL PAÍS, o vereador Nunes diz que “pouco importa o partido” em que a professora milita, “desde que ela cumpra a obrigação pela qual foi contratada”.
Para Ferreira, é importante falar de temas que afetam o cotidiano dos alunos e aproximá-los da disciplina que ensina dentro de sala de aula, como transporte público, alimentação escolar e também violência contra a mulher. É essa proximidade, continua a professora, que faz com que os próprios alunos recorram a ela para relatar fatos delicados, de sofrimento emocional, e buscar ajuda. “É aluna que vem dizer que foi abusada dentro de casa, é aluno que chora compulsivamente porque viu o pai bater na mãe. Uma vez, um deles veio contar que as colegas estavam se automutilando, e aí organizamos juntos uma conversa”, relata. São situações do dia a dia como essas que fazem com que aborde essas temáticas dentro de sala de aula como fatos sociais ligados a comportamentos culturais históricos. “Essas crianças passam por traumas gigantescos que nem se comparam com o que estou passando. Por isso, sempre digo que não vou abrir mão de persistir nesses assuntos”, garante.
Por Paulo Betim