(Época, 07/10/2014) Okoloma era um de meus melhores amigos de infância. Morávamos na mesma rua, e ele cuidava de mim como um irmão mais velho. Quando eu gostava de um garoto, pedia a opinião dele. Engraçado e inteligente, usava uma bota de caubói de bico pontudo. Em dezembro de 2005, ele morreu num acidente de avião, no sudoeste da Nigéria. Até hoje não sei expressar o que senti. Era uma pessoa com quem eu podia discutir, rir e ter conversas sinceras. Também foi o primeiro a me chamar de feminista.
A nova luta das mulheres
Eu tinha 14 anos. Um dia, na casa dele, discutíamos – metralhávamos opiniões imaturas sobre livros que havíamos lido. Não lembro exatamente o teor da conversa. Mas estava no meio de uma argumentação quando Okoloma olhou para mim e disse: “Sabe de uma coisa? Você é feminista!”. Não era um elogio. Percebi pelo tom da voz dele – era como se dissesse: “Você apoia o terrorismo!”. Não sabia o que a palavra feminista significava. E não queria que Okoloma soubesse que não sabia. Então disfarcei e continuei argumentando. A primeira coisa que faria ao chegar em casa seria procurar a palavra no dicionário.
Em defesa do macho oprimido
Em 2003, escrevi um romance chamado Hibisco roxo, sobre um homem que, entre outras coisas, batia na mulher, e sua história não acaba lá muito bem. Enquanto eu divulgava o livro na Nigéria, um jornalista, um homem bem-intencionado, veio me dar um conselho (talvez vocês saibam que nigerianos estão sempre prontos a dar conselhos que ninguém pediu). Ele comentou que diziam que meu livro era feminista. Seu conselho – disse, balançando a cabeça com um ar consternado – era que eu nunca, nunca me intitulasse feminista, já que as feministas são mulheres infelizes que não conseguem arranjar marido. Então decidi me definir como “feminista feliz”.
Esquadrões antiestupro
Mais tarde, uma professora universitária nigeriana veio me dizer que o feminismo não fazia parte de nossa cultura, que era antiafricano e que, se eu me considerava feminista, era porque fora corrompida pelos livros ocidentais. De qualquer forma, já que o feminismo era antiafricano, resolvi me considerar “feminista feliz e africana”. Depois, uma grande amiga me disse que, se eu era feminista, então devia odiar os homens. Decidi me tornar uma “feminista feliz e africana que não odeia homens – e que gosta de usar batom e salto alto para si mesma, não para os homens”.
É claro que não estou falando sério, só queria ilustrar como a palavra “feminista” tem um peso negativo. A feminista odeia os homens, odeia sutiã, odeia a cultura africana, acha que as mulheres devem mandar nos homens; ela não se pinta, não se depila, está sempre zangada, não tem senso de humor, não usa desodorante.
Quando eu estava no primário, no começo do ano letivo a professora anunciou que daria uma prova, e quem tirasse a nota mais alta seria o monitor da classe. Ser monitor era muito importante. Queria muito ser a monitora da minha classe. E tirei a nota mais alta. Mas, para minha surpresa, a professora disse que o monitor seria um menino. Ela se esquecera de esclarecer esse ponto, achou que fosse óbvio. Um garoto tirou a segunda nota mais alta. Ele seria o monitor. O mais interessante é que o menino era uma alma bondosa e doce, que não tinha o menor interesse em vigiar a classe com uma vara – exatamente o que eu almejava. Mas eu era menina, e ele menino, e ele foi escolhido. Nunca me esqueci desse episódio.
Se repetimos uma coisa várias vezes, ela se torna normal. Se vemos uma coisa com frequência, ela se torna normal. Se só os meninos são escolhidos como monitores da classe, então em algum momento nós todos acharemos, mesmo que inconscientemente, que só um menino pode ser o monitor da classe. Se só os homens ocupam cargos de chefia nas empresas, começamos a achar “normal” que esses cargos de chefia só sejam ocupados por homens.
Homens e mulheres são diferentes. Temos hormônios diferentes, órgãos sexuais diferentes e atributos biológicos diferentes – as mulheres podem ter filhos, os homens não. Os homens têm mais testosterona e, em geral, são fisicamente mais fortes que as mulheres. Existem mais mulheres do que homens no mundo – 52% da população mundial é feminina. Mas os cargos de poder e prestígio são ocupados pelos homens. A nigeriana Wangari Maathai, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, se expressou muito bem e em poucas palavras quando disse que, quanto mais perto do topo chegamos, menos mulheres encontramos.
Então, de uma forma literal, os homens governam o mundo. Isso fazia sentido há 1.000 anos. Os seres humanos viviam num mundo onde a força física era o atributo mais importante para a sobrevivência. Quanto mais forte alguém era, mais chances tinha de liderar. E os homens, de uma maneira geral, são fisicamente mais fortes. Hoje, vivemos num mundo completamente diferente. A pessoa mais qualificada para liderar não é a fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos. Tanto um homem como uma mulher podem ser inteligentes, inovadores, criativos. Nós evoluímos. Mas nossas ideias de gênero ainda deixam a desejar.
Sempre que vou acompanhada a um restaurante nigeriano, o garçom cumprimenta o homem e me ignora. Os garçons são produto de uma sociedade em que se aprende que os homens são mais importantes que as mulheres. Sei que eles não fazem por mal – mas há um abismo entre entender algo racionalmente e entender emocionalmente. Toda vez que eles me ignoram, me sinto invisível. Fico chateada. Quero dizer a eles que sou tão humana quanto um homem e digna de ser cumprimentada. Sei que são detalhes, mas às vezes são os detalhes que mais incomodam. Uma amiga americana trabalha com publicidade e tem um belo salário. Só há duas mulheres em sua equipe: ela e uma outra. Certa vez, numa reunião, ela disse que se sentira menosprezada por sua chefe, que ignorara seus comentários e elogiara um dos homens que haviam emitido uma opinião parecida com a dela. Ela queria se colocar e enfrentar a chefe, mas ficou quieta. Depois da reunião, foi chorar no banheiro e me ligou para desabafar. Ela não disse o que pensava para não parecer agressiva. Deixou o ressentimento ferver em banho-maria. O que me impressionou – em relação a ela e a várias outras amigas americanas – é quanto essas mulheres investem em ser “queridas”, como foram criadas para acreditar que ser benquista é muito importante. Isso não inclui demonstrar raiva ou ser agressiva, tampouco discordar.
Perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocupar com o que os meninos pensam delas. Mas o oposto não acontece. Não ensinamos os meninos a se preocupar em ser “benquistos”. Se perdemos muito tempo dizendo às meninas que elas não podem sentir raiva ou ser agressivas ou duras, elogiamos ou perdoamos os homens pelas mesmas razões. Em todos os lugares do mundo, existem milhares de artigos e livros ensinando o que as mulheres devem fazer, como devem ou não devem ser para atrair e agradar aos homens. Livros sobre como os homens devem agradar às mulheres são poucos.
Criamos as meninas de uma maneira bastante perniciosa, porque as ensinamos a cuidar do ego frágil masculino
A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que se comece a planejar e a sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos com si próprios. É assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de um outro modo. O modo como criamos nossos filhos homens é nocivo. Nossa definição de masculinidade é muito estreita. Abafamos a humanidade que existe nos meninos, enclausuramo-los numa jaula pequena e resistente. Ensinamos que eles não podem ter medo, não podem ser fracos ou se mostrar vulneráveis, precisam esconder quem realmente são – porque têm de ser, como se diz na Nigéria, homens duros.
No ensino médio, quando um garoto e uma garota saem juntos, o único dinheiro de que dispõem é uma pequena mesada. Mesmo assim, espera-se que ele pague a conta, sempre, para provar sua masculinidade. (Depois nos perguntamos por que alguns roubam dinheiro dos pais…) E se tanto os meninos quanto as meninas fossem criados a não mais vincular a masculinidade ao dinheiro? O pior é que, quando os pressionamos a agir como durões, os deixamos com o ego muito frágil. Quanto mais duro um homem acha que deve ser, mais fraco será seu ego. E criamos as meninas de uma maneira bastante perniciosa, porque as ensinamos a cuidar do ego frágil do sexo masculino. Ensinamos as meninas a se encolher, a se diminuir, ao lhes dizer: “Você pode ter ambição, mas não muita. Deve almejar o sucesso, mas não muito. Senão você ameaça o homem. Se você é a provedora da família, finja que não é, sobretudo em público. Senão você emasculará o homem”. Por que, então, não questionar essa premissa? Por que o sucesso da mulher ameaça o homem?
Uma vez, um conhecido meu nigeriano me perguntou se não me incomodava que os homens se sentissem intimidados comigo. Não me preocupo nem um pouco, porque o homem que se sente intimidado por mim é exatamente o tipo de homem por quem não me interesso. Mesmo assim, fiquei surpresa. Já que pertenço ao sexo feminino, espera-
se que almeje me casar. Espera-se que faça minhas escolhas levando em conta que o casamento é o fato mais importante do mundo. O casamento pode ser algo bom, uma fonte de felicidade, amor e apoio mútuo. Por que ensinamos as meninas a aspirar ao casamento, mas não fazemos o mesmo com os meninos?
Uma nigeriana conhecida minha decidiu vender sua casa para não intimidar o homem que eventualmente quisesse se casar com ela. Conheço uma outra, também solteira, que, em congressos, usa uma aliança de casamento porque quer “ser respeitada” pelos colegas. Isso num ambiente de trabalho moderno. Há moças que, de tão pressionadas pela família, pelos amigos, até pelo trabalho, acabam fazendo péssimas escolhas. Em nossa sociedade, a mulher de uma certa idade que ainda não se casou se enxerga como uma fracassada. O homem, se ainda permance solteiro, é porque não teve tempo de fazer sua escolha.
Falar é fácil, eu sei, mas as mulheres só precisam aprender a dizer “não” a tudo isso. A realidade, porém, é mais difícil, mais complexa. Somos seres sociais e internalizamos as ideias por meio da socialização. Ensinamos que, nos relacionamentos, é a mulher quem deve abrir mão das coisas. Criamos nossas filhas para enxergar as outras como rivais – não em questões de emprego ou realização, mas rivais da atenção masculina. Ensinamos as meninas que elas não podem agir como seres sexuais do mesmo modo que os meninos. Se temos filhos homens, não nos importamos em saber sobre as namoradas. E os namorados de nossas filhas? Esperamos que elas arranjem o homem perfeito para, na hora certa, se casar. Policiamos nossas meninas. Elogiamos a virgindade delas, mas não a dos meninos (me pergunto como isso pode funcionar, já que a perda da virgindade é algo que normalmente envolve duas pessoas).
Recentemente, uma moça foi estuprada por um grupo de homens, na Nigéria. A reação de vários jovens, de ambos os sexos, foi algo do gênero: “Sim, estuprar é errado, mas o que ela estava fazendo no quarto com quatro homens?”. Bem, se possível, tentemos esquecer a crueldade desse raciocínio. Os nigerianos foram criados para achar que as mulheres são inerentemente culpadas. E elas cresceram esperando tão pouco dos homens que a ideia de vê-los como criaturas selvagens, sem autocontrole, é, de certa forma, aceitável.
Ensinamos as meninas a sentir vergonha. “Fecha as pernas, olha o decote.” Nós as fazemos sentir vergonha da condição feminina, elas já nascem culpadas. E crescem e se transformam em mulheres que não podem externar seus desejos. Elas se calam, não podem dizer o que realmente pensam, fazem do fingimento uma arte. Conheço uma mulher que odiava tarefas domésticas, mas fingia que gostava, pois fora ensinada que “uma boa esposa” tem de ser “caseira”. Ela por fim se casou. A família do marido começou a reclamar quando seu comportamento mudou. Ora, na verdade ela não mudou. Apenas se cansou de fingir ser o que não era.
Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte de nossa cultura, temos de mudar a cultura
O problema de gênero é prescrever como devemos ser, em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para ser quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas do gênero.
Decidi parar de me desculpar por ser feminina. Quero ser respeitada por minha feminilidade. Porque mereço. Gosto de política e história e adoro uma conversa boa, produtiva. Sou feminina. Sou feliz por ser feminina. Gosto de salto alto e de variar os batons. É bom receber elogios, seja de homens, seja de mulheres (cá entre nós, prefiro ser elogiada por mulheres elegantes). Com frequência uso roupas que os homens não gostam ou não “entendem”. Uso essas roupas porque me sinto bem nelas. O “olhar masculino”, como determinante das escolhas da minha vida, não me interessa.
Muita gente diz que a mulher é subordinada ao homem porque isso faz parte da nossa cultura. Mas a cultura está sempre em transformação. Tenho duas sobrinhas gêmeas e lindas, de 15 anos. Se tivessem nascido há 100 anos, teriam sido assassinadas. Há 100 anos, a cultura Igbo considerava o nascimento de gêmeos como um mau presságio. Hoje, essa prática é impensável para nós.
Para que serve a cultura? A cultura funciona para preservar e dar continuidade a um povo. Em minha família, sou a filha que mais se interessa pela história de quem somos, nossas terras ancestrais, nossas tradições. Meus irmãos não têm tanto interesse. Mas não posso ter voz ativa, porque a cultura Igbo favorece os homens, e só eles podem participar das reuniões em que as decisões familiares mais importantes são tomadas. Então, apesar de ser mais ligada a esses assuntos, não posso frequentar as reuniões. Não tenho direito a voz. Porque sou mulher.
A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte de nossa cultura, então temos de mudar nossa cultura.
Penso com frequência em meu amigo Okoloma. Espero que ele e os outros que morreram na queda do avião descansem em paz. Ele sempre será lembrado por aqueles que o amavam. Tinha razão, anos atrás, ao me chamar de feminista. Sou feminista. Naquele dia, quando cheguei em casa e procurei a palavra no dicionário, foi esse o significado que encontrei: “Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica entre os sexos”.
Minha bisavó, pelas histórias que ouvi, era feminista. Fugiu da casa do sujeito com quem não queria casar e casou com o homem que escolheu. Ela resistiu, protestou, falou alto quando se viu privada de espaço e acesso por pertencer ao sexo feminino. Ela não conhecia a palavra “feminista”. Mas nem por isso não era. Mais mulheres deveriam reivindicar essa palavra. O melhor exemplo de feminista que conheço é meu irmão Kene. Ele também é um jovem legal, bonito e muito másculo. A meu ver, feminista é o homem ou a mulher que diz: “Sim, existe um problema de gênero ainda hoje e temos de resolver, podemos fazer melhor”. Todos nós, mulheres e homens, podemos fazer melhor.
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Acesse no site de origem: “Sejamos todos feministas”, diz Chimamanda Adichie (Época, 07/10/2014)