Neon Cunha se tornou uma das maiores vozes do Brasil na luta sobre despatologização das identidades de pessoas trans.
(Geledés, 28/01/2019 – acesse no site de origem)
Geledés no Debate inicia 2019 entrevistando Neon Cunha, ativista, publicitária, diretora de arte, negra e trans, ela se tornou conhecida nacionalmente ao entrar com uma ação pedindo morte assistida, caso não fosse aprovada a mudança de seu nome civil. Em 2016, Neon se tornou a primeira mulher trans a mudar de nome e gênero sem a exigência de laudo e sem realizar a cirurgia de redesignação genital, após negar o diagnóstico de transtorno da disforia de gênero. Uma luta que era individual se tornou uma vitória coletiva. Como ela conta aqui, seu principal objetivo era “mudar o processo que estava associado as questões do Protocolo Transsexualizador”. Neon é um nome grego e significa novo.
A terceira filha mais velha de uma família de dez filhos relata o apoio e afeto recebidos de sua mãe, faxineira, a quem revelou aos dois anos e meio de idade que era uma menina. Sofrendo bullying desde os três anos de idade, Neon encontrou num grupo de mulheres negras a força para seu processo de identificação. “Foi nesse núcleo de mulheres negras que lapidei a minha existência”, diz.
Geledés– Como se deu a decisão de entrar com uma ação judicial em 2016 para mudar seu nome e por que essa iniciativa foi veiculada ao direto à morte assistida pelo Estado brasileiro, caso sua exigência fosse recusada?
Eu já vinha pensando em como seria mudar todo o processo histórico que estava condicionado à questão do Protocolo Transsexualizador (instituído em 2008 pelo governo federal para atendimento especializado às pessoas trans e travestis no SUS) que dava condição de dizer quem eram as pessoas transsexuais e travestis no Brasil. Além dessa questão, eu tinha consciência de que os movimentos sociais voltados às pessoas trans até então só falavam de mulheres transexuais e travestis, e mal se falava do homens trans. Sentia-me cansada da lerdeza judicial no país e temerosa da violação do meu corpo ou da possibilidade de sofrer a morte de qualquer forma, lembrando que o nome social não vai nem nas lápides, ou ao menos antes não ia.
Ou seja, já não bastava ter que sofrer com as violências em vida para também me submeter a outra violência pós-vida. Um ano antes de entrar com a ação, eu já havia falado com o advogado Eduardo Mazini, que depois assumiu o meu caso, dizendo que iria esperar sair a lei que estabelece direito à identidade de gênero, que era uma proposta dos deputados Jean Wyllys e da Érika Kokai (PL 5002), estabelecida nos moldes do que se tem na Argentina e em Portugal.
Pensei que meu corpo estava exposto e apesar de a minha vida não valer nada para o Brasil, ela vale muito para mim, para as pessoas que eu amo e que me amam. Então resolvi entrar com essa ação, dizendo ao meu advogado que recusaria a ser “patologizada” e não ofereceria laudo de espécie alguma, fosse ele psicológico, psiquiátrico, de endocrinologista ou assistente social, que preconizasse os processos anteriores. E se eles me negassem, o país precisaria assumir a responsabilidade da minha morte e a abjeção destas vidas. Foi assim que entrei com a questão da morte assistida, porque, entre ter meu corpo violado, exposto, ameaçado, sendo que eu vinha sofrendo violências desde a infância, acredito que era justo saber a dimensão da dor e da negação de minha existência.
Poder dialogar com a possibilidade de dignidade, principalmente nesse processo de fim de existência, é questão de atitude. É como envelhecer no Brasil, uma vez que as pessoas aqui são consideradas descartáveis. Os brasileiros não olham para seus idosos como acúmulo de conhecimento e respeitabilidade. E sou muito consciente sobre tudo isso. Portanto, caberia a mim mesma o direito de negação da minha própria existência. E a partir desse pensamento, construí o processo judicial. E não foi apenas um processo, mas a criação de uma ação política. Procurei o jornal Folha de São Paulo que deu o título à matéria “Mulher ou Morte”; um artigo inédito, assim como foi inédito se usar pela primeira vez no país a Constituição para casos assim. Foi um precedente único, não sou eu quem falo, foram os pesquisadores que fizeram essa afirmação.
Geledés– O que veio com a mudança de seu nome?
Uma coisa muito importante de se pontuar é que o nome mudado não é de batismo, e sim civil. Não é mais um nome social como uma concessão de determinar como seria a vida de uma pessoa trans. Isso para mim é muito importante, porque esse nome tem legitimidade. E olhe que perversidade: enquanto que ser negra para mim é muito fácil de entender, existe a questão da socialização. Você passa por um processo em que as pessoas dizem lhe dar uma condição social desde que você prove que você é uma pessoa digna, uma “mulher de verdade” e aí sim, lhe dão uma condição de “mulher civilizada”. Eu saio do lugar da besta, dessa concessão de sociabilidade, para a condição de civilidade.
Geledés– Você disse certa vez numa entrevista que aceita apenas ser chamada de trans entre as mulheres negras. Por favor, explique.
As mulheres negras cisgêneras já passaram por esse processo. Fui apresentada à Marcha das Mulheres Negras pela Nilza Iraci (coordenadora do Geledés) e a gente não pode negar as semelhanças quando elas acontecem. A Nilza também é uma mulher negra de pele mais clara, que passou pela ditadura e passou por um processo que se assemelha com o que sofri em outra forma de ditadura. Porque eu nasci na ditadura, mas vivi a partir da ditadura da exclusão social. E foi nesse núcleo de mulheres negras que lapidei a minha força e a minha existência.
É nele em que são discutidas as identidades de gênero. Então chegar nesse lugar em que uma outra condição é repensada, acolhida e, de certa forma, vivenciada, faz com que haja uma respeitabilidade em que não encontrei em outros lugares. Nesse lugar não falam em trans como exclusão, mas reconhecem a trans como um processo que precisa ser identificado, acolhido, respeitado e trabalhado, para que não sejam reproduzidas as opressões. Então nesse grupo, elas dizem que eu trago além da pauta da mulher negra, a questão da transgeneridade. Então nesse espaço eu me permito e permito o reconhecimento identidário, porque existe acima de tudo acolhimento dessa dor da abjeção. Ali a trans é tratada com o máximo respeito.
“O que vamos fazer com essas pessoas que cometeram crime de ódio? Nós vamos ampliar o discurso do encarceramento em massa ou entender essa construção de subjetividade e intersexualidade que constrói essa violência? Precisamos ampliar o debate.”
Geledés– Qual a importância das grandes líderes negras em sua vida?
É um fascínio. É um universo a ser explorado, encantamento; é mergulhar em você, é o espelhamento. As lideranças negras estão em tantos lugares possíveis. Está em quem desce a ladeira da favela com roupa para lavar, por exemplo. É ver Sueli Carneiro na Marcha das Mulheres Negras e conversar com simplicidade. Em nosso primeiro encontro, ela me disse: “O que é que foi Neon?”. E respondi: “Sabe o que é Sueli? Você é de uma grandiosidade, que eu achava que tivesse um metro e oitenta, um metro e noventa”.
E ela disse rindo: “Sou baixinha mesmo, o que é que foi? O que é grandona?” É isso. É um encontro de mares e rios, dos céus, dos ares, dos fogos, de todos os elementos. É ser Maya Angelou (1928-2014), Angela Davis, Bell Hooks, Djamila, Maria Clara, Nilza Iraci, Luciana, Juliana, Andréias, Veronica Bolina, Lea, Cintia Gomes. Daria para passar o dia falando de mulheres pretas que me antecederam, que me são contemporâneas, que já estão margeando o futuro. Dona Conceição Evaristo, Daí Rodrigues, Érica Malunguinho, Érica Hilton. Há um rosário de mulheres pretas que não têm fim. É Orun, é constelação, é magia.
É o fascínio que alimenta o caminho para ser humana, para ser potente, para ser grande. É a diversão, é o prazer; é falar sobre a dor de Vilma Piedade, mas também é o encontro com 24 mulheres encarceradas em um presídio masculino. É um espelho com 24 facetas sobre você; é dialogar sobre afeto, ética, moral. É falar sobre a vida no cárcere privado, sobre a vida egressa, sobre a vida quem está em situação de rua, quem tá morando na rua. Você quer mesmo saber de forma objetiva o que é ser uma líder negra? É ser infinita, como toda grande força.
“Ainda que vivo, e muito bem vivo, Jean Wyllys nos obriga novamente a pensar na morte e acima de tudo nos leva a refletir sobre o quanto devemos lutar para garantir a vida e viver na beleza de sermos diversos.”
Geledés– Como entende a saída do deputado Jean Wylyys do país e qual o legado que ele deixa para a comunidade LGBT?
O legado de Jean Wyllys vai além de sua carreira política e se funde com sua trajetória de ex-BBB. Sua popularidade é acima de tudo um avanço na luta contra os preconceitos. Wyllys também é jornalista com mestrado em Letras e Linguística e professor.
O nordestino tem uma história de vida e tanto. É ainda muito significativo para mim que no mês de janeiro em que se celebra a visibilidade trans no Brasil, um casal não binário, Ares Saturno e Soren Denar, morre por meio de suicídio na capital paulista. Numa cidade no interior do Estado de São Paulo, aconteceu também o brutal assassinato da mulher trans ou travesti, Quelly da Silva – um jovem de 20 anos removeu e guardou seu coração, deixando no lugar a imagem de uma santa. Esse caso me fez lembrar outra morte, desta vez por espancamento, com rigores religiosos de paus e pedras, da nordestina Dandara dos Santos, em 2017.
E para citar outros casos além de transfobia, em dezembro de 2018, o cabeleireiro Plínio foi assassinado com facadas em plena Avenida Paulista, a mesma avenida em que um jovem agredido com uma lâmpada, em 2010, exatamente o ano em que Jean Wyllys foi eleito deputado federal pela primeira vez (se continuasse, seriam três mandatos consecutivos). Ainda que vivo, e muito bem vivo, Jean Wyllys nos obriga novamente a pensar na morte e, acima de tudo, nos leva a refletir sobre o quanto devemos lutar para garantir a vida e viver na beleza de sermos diversos. E como afirmou Aristóteles, a política é para se fazer “o bem para a humanidade” e não somente ocupar cargos.
Geledés-Entre as medidas do novo governo, está a extinção da pasta LGBTQI+, antes alocada na Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos. Como vê essa medida e quais consequências de sua extinção para essa população?
Existe sim uma ameaça ideológica principalmente contra pessoas LGBTQIs, mas é bom lembrar que o Conselho LGBT sempre se chamou Conselho Nacional de Combate à Discriminação, inclusive no governo Dilma. Nunca esse conselho chamou-se Conselho LGBT. Portanto, é bom que essa pauta seja pensada, porque desde sempre é uma questão que se negociou dentro da história de luta de combate à homofobia, do kit gay, das identidades de ideologia de gênero. É muito importante de como a gente trata esse assunto. Agora ideologicamente está posto.
Na minha adolescência, escutei do próprio Lula (ex-presidente), em praça pública, que não havia homossexuais na classe operária. Então a história das lutas de LGBT no Brasil não mudaram muito nos últimos tempos por conta de governos. Mudaram por causa das ações da sociedade civil organizada ou de ativistas independentes. Isso é muito importante pontuar e significa alguns poucos avanços, porque não há nenhuma lei para o casamento, e sim uma jurisprudência. É como o nome civil para as pessoas trans: existe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. Ou seja, as pessoas LGBT têm de se manter alertas, reforçarem seus trabalhos de base para que minimamente avancemos nas eleições municipais. Nós dormimos no barulho e aceitamos qualquer coisa, como frases do tipo “o que dá pra fazer agora é isso”.
Chega! Temos que começar a lutar por uma legislação que combata a LGBTfobia, similar à lei que combate ao racismo. E lutar para que essas leis tenham validade. Aliás, se usarmos o artigo 5 da Constituição, não deveria nem haver estar conversa, porque esse artigo é pleno quando fala de cidadania e humanidade. Deveríamos estar na defesa apurada e aguerrida por tudo que já foi conquistado no processo constituinte. Para mim, esse processo é inquestionável. É para isso que teremos de olhar.
“O combate ao ódio aos LGBTs no Brasil tem que começar pela educação. Vamos ter que falar sobre educação de gênero, orientação sexual e as possibilidades de vivências que estão fora da regrinha, da caixinha, das pessoas que acham que só tem isso e acabou. Precisa haver uma lei que combata a LGBTfobia e que instrumentalize o país para discutir o assunto. Essa lei tem que ser pensada para além do racismo.”
Geledés-Apesar de frequentemente noticiados, os assassinatos e atos violentos contra a população LGBTQIA+ não diminuem, pelo contrário, só aumentam. Quais medidas acredita que deveriam ser tomadas pelas diferentes esferas de governo?
O combate ao ódio aos LGBTQIA+ no Brasil tem que começar pela educação. Vamos ter que falar sobre educação de gênero, orientação sexual e as possibilidades de vivências que estão fora da regrinha, da caixinha, das pessoas que acham que só tem isso e acabou. Precisa haver uma lei que combata a LGBTfobia e que instrumentalize o país para discutir o assunto. Essa lei tem que ser pensada para além da que combate o racismo. Uma lei que seja similar à lei Maria da Penha; que trate o gênero com amplitude, a sexualidade e o crime de ódio em outra dimensão e que tenha como uma das prioridades a educação. O que vamos fazer com essas pessoas que cometeram crime de ódio? Nós vamos ampliar o discurso do encarceramento em massa ou entender essa construção de subjetividade e intersexualidade que constrói essa violência?
Precisamos ampliar o debate. E temos que assumir a responsabilidade social na construção de uma nova sociedade com maior capaz de acolher a diversidade humana. Temos de tratar desse tema com seriedade e responsabilidade, porque acima de tudo, estamos falando de vidas humanas. A minha pergunta é: quais vidas importam? E elas importam à nossa nação? Ou será que há pessoas que se sentem no direito de eliminar outras? É o próprio movimento tem que ser repensado.
Janeiro é o mês de visibilidade do trans no Brasil, e quando se comemora isso e se consegue uma audiência no gabinete da República, se omite a falar sobre o caso de Dandara dos Santos, uma mulher não branca que morreu no conjunto de Palmares no mesmo mês que morreu Dandara, a esposa de Zumbi. Ela foi uma liderança feminista que antecede muitas coisas na discussão de liderança de luta de mulheres negras no Brasil.
Geledés-Como vê a questão sobre a discussão de sexualidade nas escolas públicas?
A discussão não se restringe apenas à esfera pública, mas precisa atingir todos os lugares além das escolas públicas. Temos que pensar em crianças de escolas comunitárias, em cursos de promoção de delegados populares, em todos os lugares de formação, inclusive os núcleos familiares. Temos que entender que a formação tem uma grande parcela de responsabilidade dos governos, mas também de uma sociedade como um todo. Chamar a sociedade para essa discussão é urgente. Não dá mais para excluí-la. E eu quero falar sobre esse assunto. Também somos responsáveis por nossas omissões, principalmente as que negligenciam vidas.
Geledés-Você já contou publicamente como foi brutalmente violentada. Como explica o ódio contra a população LGBT?
Na Argentina, na lei de identidade de gênero se reconhece o direito ao auxílio do governo para pessoas nascidas até 1975. É um salário digno para reconhecer que essas pessoas foram violentadas em exclusão social. A violência acontece justamente porque as pessoas não entenderam que seus privilégios não são ameaçados por outras que estão tentando acessar a dignidade humana. É entender a humanidade como um processo plural e, talvez, falar sobre isso além dessa lógica binária de macho e fêmea; de sexo constituído biologicamente.
É um assunto que se estuda desde a antiguidade, que se viu na Grécia, em culturas anteriores à chegada dos colonizadores. Daria para falar horas sobre esse processo. E as religiões têm um papel muito importante na negação do direito da humanidade que permeia diante da ausência de um estado laico, em que se negocia o direito de ser quem se é. Como os indígenas já pediram há tempos: queremos o direito de ser quem somos.
E as pessoas LGBT estão aí dizendo: nó só queremos co-existir. E que a minha existência seja tão respeitada quanto a sua, que é cheia de privilégios. O ódio produzido pela ideia da bestialidade que não corresponde às normas. Mas quem elabora as normas? E elas são necessárias a quem? Ás vezes me pergunto se para as mulheres negras cisgêneras cabe a lógica da cisgeneridade. Quando uma mulher negra, independente dessa condição de orientação sexual ou de identidade de gênero, cabe a cisgeneridade? E a cisgneridade é extremamente tóxica. O corpo da mulher negra sempre é “objetificado”. Rara a mulher negra que não sofre isso no seu corpo, no seu afeto, na sua existência. A dificuldade é permitir que essas pessoas sejam reconhecidas como seres humanos pretos.
“O que vamos fazer com essas pessoas que cometeram crime de ódio? Nós vamos ampliar o discurso do encarceramento em massa ou entender essa construção de subjetividade e intersexualidade que constrói essa violência? Precisamos ampliar o debate.”
Geledés-Você disse também que já sofreu vários tipos de preconceito, inclusive sobre sua condição de mulher negra. Como foi isso e como respondeu?
São dois momentos muito marcantes para mim. O primeiro é quando era ainda menina, quando cursava a segunda série, e durante o intervalo da aula, estava num grupo de meninas que me disseram: “a gente não quer andar com você mais, porque você tem cor de sujeira, cor do papel que embrulha os cadernos”, referindo-se ao papel pardo. A questão de gênero já estava ok para mim. Mas compreender que estava sendo excluída por causa do tom de pele e ser associada à sujeira me tornou silenciosa, excluída e reclusa.
Outro momento marcante foi quando tinha 26 anos e comecei a desenvolver minha sexualidade e estava com meu primeiro namorado. Tivemos os primeiros desentendimentos e ele me disse: “quem você acha que vai namorar com alguém como você e ainda por cima preta?”. Você sabe que as pessoas têm preconceito. É como se só ele fosse me aceitar. A gente ressignifica a vida, transforma-a. É essa coisa de se entender de autonomia, de autoconhecimento, de encontrar outras mulheres negras. Entender que você, mulher negra, é plena e o problema é do outro.
Geledés-Certa vez você mencionou que luta para o conceito de liberdade. Qual é esse conceito?
Meu conceito é sobre a infinitude mesmo. Não temos começo, meio e fim; só temos a contemporaneidade do aqui e agora. E chamar a liberdade para a questão da consciência, da responsabilidade, da autonomia de ser você mesma. De ter responsabilidade sobre o seu existir. É preciso dialogar com outras existências e isso me torna responsável não só sobre a minha vida, mas sobre as vidas com as quais interajo. Liberdade nasce no respeito por mim e por quem eu enxergo. Esse enxergar é amplo e sensorial. Liberdade é sobre a condição humana. O que não pode ser pensado e negociado.
“Aprendi com minha mãe que afeto não é sobre o que eu queria, mas sobre o que eu estava disposta a dar. Não há como esquecer de quem sou filha. Mais do que isso, de quem me ensinou que a minha postura é a de abrir espaço em uma sociedade.”
Geledés-Você sempre fala de sua mãe. Como ela é e o que lhe deixou como maior legado?
Vai soar poético, mas pense em um momento muito significativo. Eu me reconheci com dois anos e meio de idade e fico imaginando tudo que ela vivenciou a partir dessa experiência comigo, ela que me conta que gestou uma menina, nasci em um sábado, às seis e meia da tarde, e o céu ficou rosa alaranjado, céu de Ewá, uma das divindades femininas do Candomblé, fico imaginando o que sentiu quando disseram que não era a menina. Fico imaginando a cabeça dela ao ter que lidar com tudo isso e o tanto, o tanto que ela me protegeu. Foi a coerência dela que me protegeu.
São tantas as histórias de proximidade e aqui vou lhe contar duas. Fico imaginando aquela mulher, faxineira a vida toda, que sustentou dez filhos com meu pai, tamanha era sua grandiosidade. Um dia ela chegou tarde e precisava fazer a comida e estava tudo muito atrasado. Ela me deu uma panela de arroz e eu disse: quero lavá-la. Com seis anos, subi no banquinho de madeira para alcançar o tanque e lavei a panela. Ela olhou e me disse que ainda não estava boa. Na quarta vez, a panela de alumínio de aro 32- grande para uma criança -, estava areada, próximo do que ela considerava ideal. E ela falou: não está bom, mas a tampa está ótima. Você conseguiu.
Um outro episódio: morávamos em uma casa de um cômodo só e as divisões eram feitas com os móveis. Dormíamos com as cabeças intercaladas com os pés e já cansada e incomodada de ter de ceder meu lugar todas as vezes que uma visita chegava, um dia lhe perguntei: “por que tenho que dormir no chão para ceder o lugar para essa gente que não é nem daqui?” E ela respondeu: “Porque temos que dar o nosso melhor. Sempre”.
Então aprendi com minha mãe que afeto não é sobre o que eu queria, mas sobre o que eu estava disposta a dar, assim como ela o fazia. Ela limpava rodapé com escova de dente e hoje tem cinco hérnias de disco. E negociou com uma de suas patroas para entrarmos na escola quando eu tinha três anos e meio. Ou seja, não há como esquecer de quem sou filha. Mais do que isso, de quem me ensinou que a minha postura é a de abrir espaço em uma sociedade.
Geledés-Além de sua mãe, quem foi uma pessoa importante em sua vida?
Fabiana Moraes, uma intelectual que escreve no site da revista Piauí, autora do livro Nascimento de Joyce (história de uma mulher trans agrária). Ela é amiga e uma referência de mulher que pensa, que produz no Nordeste do Brasil. Não poderia esquecer de citá-la que é uma grande paixão. Uma mulher muito interessante, com vários prêmios de jornalismo. E obrigada ao Geledés! Muito amor nessa vida. Estamos juntas!
por Katia Mello