Ana Paula Braga e Marina Ruzzi, ambas de 24 anos, descobriram no movimento feminista um caminho importante: ajudar as mulheres em situação de violência a buscarem seus direitos
(Marie Claire, 06/09/2016 – acesse no site de origem)
Uma em cada cinco mulheres de até 18 anos já foi vítima de estupro ou violência sexual, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). De acordo com o Mapa da Violência divulgado em 2012, duas em cada três pessoas atendidas no SUS em consequência de violência doméstica ou sexual são mulheres. Um levantamento feito pela Agência Patrícia Galvão constatou que, a cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas. Os dados são alarmantes, mas tem muita gente empenhada em mudar este cenário.
As advogadas Ana Paula Braga e Marina Ruzzi, ambas de 24 anos, fazem parte deste quadro. Feministas declaradas, elas decidiram promover a igualdade de gênero por meio do acolhimento abrindo um escritório voltado ao atendimento de mulheres, o “Braga & Ruzzi”, que começou a funcionar no fim de maio.
“A gente sentiu que existia uma demanda muito grande de mulheres por advogadas feministas ou que fossem mais sensíveis”, contou Ana Paula em entrevista à Marie Claire. “Dos casos de divórcio aos de pensão, passando por estupro e violência doméstica, existe uma carência de atendimento e julgamento que entendem as especificidades femininas. Precisamos exigir que o Poder Judiciário considere a igualdade de gênero, temos que trazer teses jurídico-feministas para o Direito.”
Apesar do lançamento recente, elas já contam com um número inesperado de clientes, muitas delas motivadas pela recente mobilização contra a cultura do estupro.
A seguir, Ana Paula e Marina falam do machismo ainda presente no Poder Judiciário, do despreparo das autoridades no atendimento às vítimas e de algumas questões ainda desconhecidas pelas mulheres no que diz respeito à luta por mais direitos.
Marie Claire – O Direito no Brasil ainda é machista?
Ana Paula Braga – O Direito foi criado pelos homens e para os homens. Embora na nossa Constituição exista o ideal de que homens e mulheres são iguais perante a lei, a gente não nota isso na prática, porque ainda existe uma desigualdade estrutural, que prejudica as mulheres. Isso implica em dificuldades para levar o caso adiante, situação que não é comum aos homens.
Marina Ruzzi – Em casos específicos de violência de gênero, que normalmente acontece entre quatro paredes, as vítimas não têm gravação, nem testemunha. Ou seja, é a palavra dela contra a do agressor. E a voz feminina muitas vezes não é ouvida. A mulher é constantemente revitimizada pelo Estado. E isso impede que elas denunciem ou sigam adiante com a queixa.
MC – Faz diferença vítimas mulheres serem defendidas e julgadas por mulheres?
MR – Só a gente sabe o tipo de violência que sofremos, o quanto a nossa palavra não é ouvida ou valorizada. Quando nos deparamos com uma mulher sofrendo algum tipo de violência, sabemos da dificuldade enfrentada e agimos para ajudá-la.
MC – Existe um despreparo das autoridades no trato de casos de violência contra a mulher?
AP – Existe um prazo de seis meses para que a mulher preste a queixa na delegacia. Esse tempo é muito curto para ela entender o que sofreu e ter coragem de denunciar. Se esse período for estourado, o exame de corpo delito não aponta vestígios. Em alguns casos, a violência não chega nem a deixar marca. E aí a vítima acaba sendo desacreditada pela autoridade. Isso sem falar nas perguntas sem cabimento feitas pelos oficiais: ‘Por que estava na rua naquela hora?’, ‘Por que sozinha?’, ‘Por que bebeu?’, ‘Que roupa usava?’.
MR – Falta sensibilidade. O tratamento por parte das autoridades também muda quando a vítima está desacompanhada de um advogado. Mas é quando está sozinha que ela precisa de mais cuidado, de alguém amparando seus direitos.
MC – Qual o primeiro passo que uma mulher deve tomar na hora da denúncia?
AP- É importante saber que não basta fazer o Boletim de Ocorrência neste prazo de seis meses. É necessário fazer uma Representação, que significa expor claramente o desejo de processar o agressor e solicitar que a denúncia seja investigada criminalmente. O problema é que muitas autoridades não informam isso.
MR – Quando você faz só o B.O., essa queixa não segue adiante, vira só uma estatística, não um inquérito policial. Neste caso, ela perde a chance de processar.
MC – Quais outras questões as mulheres ainda desconhecem no sentido de buscar ajuda e denunciar?
MR – É importante saber que a Lei Maria da Penha prevê vários tipos de violência, inclusive a sexual. Isso vale para casos em que o companheiro a obrigada a tomar pílula, abortar ou seguir com uma gravidez quando o aborto é possível, ou seja, invade o corpo ou a intimidade da mulher dentro de uma relação familiar ou conjugal.
AP – A Lei Maria da Penha também não se trata de uma estratégia só contra agressão física. A violência doméstica envolve ainda violência psicológica – da ameaça ao controle de ações, como regular conversas, não deixar trabalhar… Tudo isso é relacionamento abusivo e está protegido por ela.
MC – O que é preciso melhorar no atendimento das vítimas?
AP – Sem dúvida, a humanização do atendimento, do acolhimento. Além disso, a mulher precisar prestar depoimento diversas vezes durante o processo, e isso faz com que ela reviva o trauma inúmeras vezes. É terrível. Em relação à violência sexual, na teoria, a mulher que foi estuprada pode se dirigir ao IML fazer o corpo delito e receber o coquetel retroviral e a pílula do dia seguinte. Porém, na prática, eles vão exigir dela um B.O. Se ele não estiver nas mãos, tem toda a espera prolongada na delegacia. E se ela pular etapas e se dirigir previamente ao hospital por estar machucada, a prova se perde.
MR – Em caso de violência doméstica, a Lei Maria da Penha prevê atendimento multidisciplinar às vítimas. Como é um ato que mexe com a nossa autoestima e psicológico, o Estado tem a obrigação de oferecer profissionais aptos a atendê-las em um tempo hábil. Poucas cidades, no entanto, tem estrutura pra isso, que quando acontece é só seis meses após a queixa ter sido prestada. Fora que é um atendimento previsto apenas em casos de violência doméstica, mas deveria ser estendido a outros âmbitos.
MC – A criação da Delegacia de Defesa da Mulher 24 horas [aberta em São Paulo] é um avanço importante?
AP – Sem dúvida. À noite, numa delegacia comum, a mulher vítima de violência vai disputar espaço com outros crimes. Uma vez eu estava de madrugada prestando queixa de um furto e encontrei uma moça que havia sido vítima de um estupro coletivo. Ela estava há cinco horas esperando sozinha pelo atendimento, porque todo flagrante passava na frente. Só quando decidi acompanhá-la como advogada, os policiais a atenderam.
MC – Como ajudar as vítimas a tomar a iniciativa de denunciar?
MR – O trabalho do convencimento é o mais difícil. O homem costuma minar completamente a autoestima dela, que acaba se culpando pelo ocorrido. Além disso, rola um sentimento por aquele cara que é o agressor, mas também o companheiro dela. O primeiro passo é trabalhar o empoderamento da mulher para que ela perceba que a conduta abusiva não é aceitável, não é amor. Através da denúncia, a gente consegue fazer um trabalho de conscientização de toda a sociedade, para que todo mundo entenda que a violência contra a mulher é inaceitável.
AP – Para isso a gente precisa trabalhar grupos de mulheres mesmo. Quando a gente compartilha e fala sobre as coisas, conseguimos perceber que aquela situação foi violenta. Quando ela ouve relatos de denúncia que foram efetivos, se sente mais estimulada a denunciar. O movimento feminista é importante pra isso.
Daniela Carasco