(Valor Econômico) Mulheres trabalhadoras têm que enfrentar falta de políticas públicas que lhes deem condições de igualdade com os homens trabalharem, como creches e escolas de tempo integral para crianças. Diferenças salariais entre profissionais qualificados seguem crescendo. Ministra Eleonora Meniccuci afirma que governo Dilma cumprirá meta de creches.
No Brasil, faltam políticas públicas que deem condições de igualdade para mulheres e homens trabalharem, como creches e escolas de tempo integral para crianças. A opinião é da professora Lena Lavinas, que defende que, mais do que ampliar para seis meses a licença-maternidade, o país deveria priorizar a extensão da licença também para os pais quando o filho nasce, período que atualmente é de cinco dias pela lei brasileira.
A permanência mais longa aumentaria a intimidade masculina com as tarefas e incentivaria a divisão dos cuidados com os filhos, a exemplo do que acontece nos países nórdicos. “Aqui não há creche nem escola em tempo integral, e as que existem são caríssimas”, diz Lena.
Luciane Bonace, 36 anos e elaboradora de conteúdo didático, contou com a ajuda da mãe para cuidar dos três filhos pequenos enquanto fazia o mestrado em história da arte na Universidade de São Paulo (USP), de 2007 a 2009, e dava aulas na prefeitura de Osasco (SP), onde era concursada. “Deixava as crianças com a minha mãe de manhã para ir para a USP, depois eu voltava, deixava um na escola e ia dar aula. O tempo todo livre que eu tinha eu precisava ler e escrever. Esperava as crianças dormirem para ficar escrevendo à noite, aí eu dormia das 2h às 5h30 e ia escrever de novo, enquanto eles ainda estavam dormindo. Foi bem sacrificante”, conta a hoje doutoranda.
Luciane, que deixou as aulas na prefeitura e presta serviços para uma grande editora, além de ser bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), acredita que o sacrifício valeu a pena porque os estudos abriram portas profissionais e a enriqueceram como pessoa. “Se eu não tivesse feito mestrado estaria fadada a continuar na prefeitura, talvez arrumar um emprego em escola particular com muito esforço para ganhar um pouco mais”.
A editora Claudia Bergamini, 31, doutora pela USP, diz que percebeu a hegemonia masculina nos cargos de chefia mesmo quando, após passar seis meses na África como parte de suas pesquisas para o mestrado, voltou para São Paulo e procurou trabalho como professora de Letras em universidades, área em que as mulheres costumam ser maioria. “Todos os coordenadores de curso que me entrevistaram eram homens”, afirma ela, que tampouco sentiu que o diploma a ajudou a ganhar mais dinheiro pelos trabalhos. “Em nenhum momento meu mestrado me ajudou. Isso que é incrível”, diz.
Em uma universidade em que dava aulas esporádicas, Claudia chegou a ouvir que a instituição não tinha condições financeiras de contratá-la porque ela tinha mestrado, o que exigiria remuneração maior do que a que ela recebia por hora. “A remuneração que eu ganhava por essas aulas não era equivalente a uma vaga com mestrado”. Hoje no ramo editorial, ela acredita que a sobrecarga das mulheres com a família é vista como desvantagem pelos empregadores. “Há o preconceito de que uma mulher não pode ser bem-sucedida se não abnegar da família para priorizar a carreira. Nas entrevistas, a primeira pergunta depois de eu dizer que era casada era se eu tinha filhos”.
Quando Claudia entrou no doutorado e conseguiu um cargo de mais responsabilidade na área de marketing de uma editora, sentiu o peso da sobrecarga na sua vida pessoal. “Gerenciava muitos processos, e cheguei a trabalhar 16 horas por dia e sair da empresa a 1h da manhã. Isso desestabilizou meu casamento de tal maneira que eu me divorciei. Tive falta de apoio dentro de casa”, avalia a editora que, após a separação, há quatro meses, trocou o emprego que a sobrecarregava por um de jornada mais leve. “A sociedade é machista e a carga sobra para as mulheres sim. Uma mulher que se sobrecarrega com marido e filhos representa menos produção que um homem que não tem essa preocupação”, afirma.
Para Simone Lara, 38 anos, a decisão de não ser mãe e priorizar a carreira não a isentou de sentir o dilema entre trabalho e filhos que povoa a mente da maioria das mulheres na hora de gerenciar o tempo. “É uma forma de poupar o meu (hipotético) filho de ter uma mãe ausente, porque se eu tivesse, eu não deixaria de trabalhar. E meu filho, de certa forma, ia ficar na escolinha, porque eu não conseguiria deixar o trabalho”, diz Simone, que fez mestrado em 2012 e conseguiu ascender profissionalmente em engenharia, área onde os homens predominam e as chefes são raras.
Apesar de ser graduada em administração, Simone acumulou 18 anos de experiência na área de engenharia industrial. “Há muito machismo na engenharia, poucos homens aceitam ser liderados por uma mulher. As mulheres só chegavam perto de um cargo de liderança quando era vaga de administração. Para área de tecnologia, é homem”, conta Simone, que chegou a gerente de pós-venda e era a única mulher entre os gestores, mas decidiu trocar a indústria pela vida acadêmica ao perceber mais oportunidades. “Sabia que não iria muito além na empresa, não ia se reverter em salário e cargos”.
Depois do mestrado, viu sua renda triplicar na universidade, ao entrar em projetos de pesquisa encomendados por empresas. “Na indústria, minha renda não cresceria tanto. Tenho colegas homens que estão nas empresas ainda esperando promoção. Seria a última da fila”.
Homem amplia vantagem salarial entre os qualificados
A diferença salarial entre homens e mulheres mais qualificados e em vagas com maior remuneração ficou maior nos últimos anos. Em 2012, as mulheres com mestrado empregadas no mercado formal de trabalho ganharam em média 50% menos que homens com o mesmo nível de instrução. Em 2007, tal hiato era bem menor: de 35,3%. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho, mostram que enquanto as profissionais femininas registraram remuneração média de R$ 4.827 no ano passado, os homens de mesma formação recebiam R$ 7.241.
Na avaliação de pesquisadoras ouvidas pelo Valor, o retrato da mulher no mercado de trabalho brasileiro é similar ao que acontece no mundo: embora sejam maioria entre os empregados com mestrado, as mulheres continuam a ocupar menos cargos de chefia e comando nas empresas, que oferecem os melhores salários. Além desse fator “cultural”, a geração recente de vagas no Brasil, concentrada em serviços que pagam menos, não favoreceu as mulheres, observam as especialistas. Uma terceira razão para a piora na desigualdade é ainda mais perversa: há mais mulheres que homens com mestrado e doutorado.
“Os retornos da escolaridade maior são muito menores para as mulheres”, diz a professora Lena Lavinas, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que avalia que, no Brasil, o perfil da forte criação de vagas dos últimos anos não favoreceu a redução do desequilíbrio salarial entre homens e mulheres.
Na última década, diz ela, a geração de empregos formais foi mais concentrada em vagas de nível de instrução médio e menos expressiva nas faixas de nível superior completo, onde estão concentrados os cargos de gerência e chefia, mais disputados e escassos. “Nós criamos 18 milhões de postos de trabalho desde 2003, porém 90% disso foi na faixa de até três salários salários mínimos. Não estamos criando oportunidades para pessoal mais qualificado. Quando há menos vagas de maior remuneração e mais competidores, quem é desfavorecida é a mulher”, afirma Lena.
A barreira velada que dificulta a chegada das mulheres aos cargos de comando nas empresas é o que as pesquisas de gênero chamam de “teto de vidro”, combinação que envolve sobrecarga de trabalho, rotina doméstica e cuidado com os filhos – já que tais afazeres ainda são considerados responsabilidades preponderantemente femininas – com a cultura em grande parte das empresas que associa a imagem feminina à menor aptidão para liderança, menos afinidade com a tecnologia e menor disponibilidade de agenda para o trabalho.
“Está ligado a estereótipos, questões ideológicas difundidas por todo lado segundo as quais as mulheres não têm jeito para mandar, preferem posições mais discretas. Como se as mulheres e o poder fossem uma relação antagônica, excludente”, explica Helena Hirata, pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, especializada em comparações das relações de gênero no trabalho no Brasil, França e Japão. “Nas indústrias que são consideradas masculinas, as mulheres são pouco recrutadas e restritas a setores muito demarcados. Os mais tecnológicos, que pagam mais, ficam com os homens”, diz Helena, que afirma que a desigualdade salarial em desfavor das mulheres é realidade no mundo todo. “Não há nenhum país em que as mulheres em funções iguais ganhem igual ou mais que os homens; sempre ganham menos”.
A multiplicação da oferta de profissionais com mestrado desfavoreceu as mulheres na questão salarial, diz a economista Hildete Pereira de Melo, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) especializada em questões de gênero e assessora especial da Secretaria de Política Públicas para as Mulheres, do governo federal. “Quando havia menos profissionais com mestrado, entrava o mais competente. À medida que você tem abundância de mão de obra com essa formação, prevalece a ideia da supremacia masculina”, afirma.
Em 2012, nos dados da Rais, o número de mulheres com mestrado em empregos formais era maior que o de homens e crescia em ritmo mais forte. O estoque de empregos ocupados por mulheres com mestrado cresceu 16,55% sobre 2011, enquanto as vagas para homens com mesma instrução cresceram 12,52%. Eram 114, 9 mil mulheres com mestrado empregadas no ano passado, ante 90,6 mil homens. “Na medida em que as mulheres se educam, a diferença salarial entre elas e os homens é cada vez maior. Você vai caminhando na carreira, mas chega uma hora em que se depara com a porta fechada, que você não vê, mas não se abre”, explica Hildete, da UFF, que destaca que salário igual para homens e mulheres em funções equivalentes já era uma bandeira do feminismo nos 70.
Outro fator que influencia o hiato de renda entre os gêneros é a concentração das mulheres em áreas que pagam menos, associadas aos tipos de trabalho que por décadas as mulheres realizavam sem remuneração: educação, cuidados com saúde, ensino infantil.
“Elas tendem a se concentrar em áreas onde elas vão poder adequar suas necessidades de tempo familiar com o trabalho”, diz Lena Lavinas. “As mulheres estão muito presentes no funcionalismo público, no mundo inteiro, porque é mais flexível. Você consegue entrar pela competência, por concurso, e consegue gerir seu tempo, se precisar faltar depois você compensa”.
A pesquisa “A Mulher no Mercado de Trabalho”, divulgada em 2012 pelo IBGE, mostra que em 2011 a maioria das mulheres ocupadas estava na área de administração pública (22,6%), seguida por comércio (17,5%) e serviços (16,2%), composição similar à observada em 2003. Só 13% delas estavam na indústria, contra 19,3% dos homens empregados.
Brasil tem políticas para mulheres, diz ministra
O governo federal cumprirá a meta de entregar 6 mil creches para crianças de até três anos até o fim da gestão da presidente Dilma Rousseff, disse ao Valor a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci.
Dados da secretaria apontam que foram concluídas 1.297 creches até 2013, e outras 3 mil estão em obras. Para 2014 a meta é construir mais 1.950, “tanto públicas quanto conveniadas, filantrópicas ou em parcerias”, segundo a ministra, em ritmo mais rápido graças ao novo Regime Diferenciado de Contratação (RDC) lançado pelo governo e que pressupõe período menor para a contratação do serviço, a construção das creches e a abertura das vagas. “Essa é uma meta obsessiva da presidenta, em parceria com todos os municípios do Brasil”, disse a ministra, feminista e pesquisadora das questões de gênero e que vê nas creches “questão fundamental para crianças e mulheres”.
Em 2010, o Brasil atendeu em creches 23,6 % das crianças até três anos de idade – mais de dois milhões estavam matriculadas. Dez anos antes, as creches recebiam 9,4% das crianças. A meta do Plano Nacional de Educação é de atender 50% das crianças de zero a três anos nas creches até 2020.
Eleonora, à frente da secretaria desde 2012, discorda “fortemente” de quem vê o Brasil atrasado em relação a outros países nas políticas públicas para as mulheres. “O Brasil em relação a outros países está muito mais avançado. Nos EUA não têm licença maternidade. A maioria dos países da América Latina também não. Só os países nórdicos têm um avanço que nenhum país alcança”, diz a ministra.
Entre as ações federais, ela destaca o programa Pró-Equidade, que incentiva empresas que agem para promover a igualdade de gênero, e tem 80 companhias inscritas; o Bolsa-Família, em que 93% dos detentores do benefício são mulheres, e o Pronatec, no qual 66% dos que concluem os cursos são mulheres. (LG)
Acesse o PDF: Programas sociais falhos atrapalham carreira feminina, Homem amplia vantagem salarial entre os qualificados e ‘Brasil tem políticas para mulheres’, diz ministra (Valor Econômico, 06/01/2014)