Na última segunda-feira, um grupo de ativistas ocupou o Senado estadual do Texas para protestar contra leis que pretendem restringir o acesso ao aborto no Estado. As mulheres do grupo apareceram vestidas com hábitos vermelhos, imitando o icônico figurino da protagonista do livro “O conto da aia”, de Margaret Atwood. A alusão não foi gratuita: publicado em 1985, o romance distópico da escritora canadense imaginava um futuro onde os avanços feministas seriam destruídos, o aborto, proibido, e as mulheres, reduzidas a serviçais cuja única função é procriar. Catapultada 30 anos após seu lançamento ao topo das listas de mais vendidos, a obra virou referência profética para novas gerações assustadas com a eleição de Donald Trump, a ameaça a direitos das mulheres e o fantasma do totalitarismo.
(O Globo, 25/03/2017 – acesse em pdf)
Aos 77 anos, Margaret é vencedora do Booker Prize, já foi traduzida para mais de 30 idiomas e frequenta a lista dos cotados ao Nobel, mas poucas vezes esteve tão em evidência quanto nos últimos meses. A convergência entre as pautas urgentes e os temas recorrentes de seus contos e romances — como o meio ambiente, as mudanças tecnológicas e a condição feminina — colocaram a sua figura e a sua obra no centro do debate político.
Uma boa hora, portanto, para retomar alguns de seus trabalhos inéditos no Brasil — como é o caso de “Dicas da imensidão”, coletânea de contos lançada em 1991 e que acaba, finalmente, de ser publicada por aqui. São dez histórias que capturam as grandes paisagens do Canadá e colocam em cena personagens femininas em situações críticas e determinantes. Já “O conto da aia”, que em abril vai virar série com transmissão pelo serviço de streaming Hulu, ganhará uma nova edição da Rocco (que publica todos os seus livros no país).
Questionada, por e-mail, se as questões femininas mudaram desde o lançamento de “Dicas da imensidão”, Margaret dá uma resposta mais ampla, que parece abranger os mistérios da criação literária e os desvios do nosso destino:
— Não podemos prever o nosso mundo, há muitas variáveis e desconhecimentos desconhecidos, coisas que existem, mas que não vemos porque não estamos procurando no lugar certo. Mas podemos dar palpites educados — explica.
E de onde a escritora tira as bases para esses palpites?
— Do que foi feito no passado, em circunstâncias similares (não coloco nada no livro que já não tenha sido feito, de uma maneira ou de outra). Do que está sendo dito e feito nesse momento. Do que pessoas com ambições políticas dizem que farão se tiverem poder (elas geralmente tentam fazê-lo). Ou seja, não sou profeta.
A afirmação pode frustrar os que veem “O conto da aia” como uma bola de cristal ao contrário, um grito de alerta que chegou atrasado aos nossos ouvidos, uma garrafa jogada ao mar com uma mensagem secreta sobre as mazelas do presente — e sobre as tantas outras que enfrentaremos no futuro. Mas a escritora provoca:
— Todos nós, porém, podemos ver a estrada em que nos encontramos. Desejamos segui-la?
Profeta ou não, Margaret e seus livros se tornaram um símbolo de resistência em uma era de ansiedades. Assídua no Twitter, onde acumula respeitáveis 1,5 milhão de seguidores (é dez vezes mais do que a também adepta Joyce Carol Oates, mas dez vezes menos do que Paulo Coelho), ela abraça causas ambientais e feministas, esculhamba Trump e interage com leitores (houve até quem pedisse que ela se candidatasse à presidente).
Sempre atenta às novas tendências, a veterana autora participou recentemente de um bate-papo com os usuários do popular site de mídia social Reddit, no qual, entre outras coisas, revelou seus filmes de terror favoritos (spoiler: quando o assunto é vampiro, Christopher Lee tem um lugar cativo em seu coração).
— Twitter é quase a única coisa que eu faço (nas redes sociais), já que minha página no Facebook é administrada por meus editores, embora eu até poste algumas coisas — conta. — Entrei no Twitter por acidente e parece mais ou menos com um programa de rádio: convidados, causas, compartilhamento de notícias, etc. Eu provavelmente não vou usar por muito tempo, estou ficando velha demais para isso. Mas dá para aprender bastante com o Twitter, especialmente sobre os mais jovens..
Na verdade, são os jovens que estão aprendendo com a autora. Trata-se de uma época profícua para as especulações futuristas de Margaret — “o mundo está instável, e as pessoas querem examinar as possibilidades”, reconhece. Ela cita o cli-fi, variante da ficção científica que lida com as consequências das mudanças climáticas, como um dos gêneros quentes do momento. A própria Margaret explorou, nos pós-apocalíticos romances que formam a sua trilogia MaddAddam (“Oryx e crake”, “O ano do dilúvio” e “MaddAddam”, publicados entre 2002 e 2013), assuntos como catástrofes biológicas, experiêcias genéticas e regimes totalitários provocados por colapsos ambientais.
— A trilogia MaddAddam é baseada em nossa realidade, como foi o “O conto da aia”. São as mesmas fontes — compara. — Se estivermos com pouca sorte, teremos um pouco dos dois livros, já que as condições ambientais pioraram, então as pessoas brigam mais pelos recursos e querem líderes fortes para restaurar a calma. E se formos estúpidos nós iremos matar os oceanos, e então vamos sufocar até a morte com a falta de oxigênio.
Além de alertar para a destruição da Terra, Margaret tem usado o Twitter para para promover e divulgar autoras mulheres (ontem, engrossou a torcida pela autora inglesa Naomi Alderman no Orwell Prize 2017). O mundo editorial continua dominado por homens?
— Na verdade, mulheres vendem muito. Por isso editores estão sempre procurando boas autoras. Mas homens dominam as resenhas. Já faz algum tempo. Homens são mais resenhados, mais homens resenham, e escritores homens são levados mais a sério. Por outro lado, quanto mais velha a mulher fica, e quanto mais morta, mais ela tem chances de ganhar a atenção dos críticos. Ser jovem e bonita é uma vantagem em algumas áreas, mas não na das resenhas dominadas por homens. Eles resenham seus cabelos, suas roupas etc. Mas nem tanto quanto se tem a minha idade.
Ela manda um emoticon de sorriso, para reforçar a ironia:
— Ou estar morto. Morto pode ser bom, embora não para a pessoa morta.
Por Bolívar Torres