O depoimento que a engenheira Susan Fowler publicou em seu blog sobre a discriminação e assédio que sofreu por ser mulher enquanto trabalhava no Uber fez com que 20 pessoas fossem demitidas da empresa, além de resultar em uma pressão que levou o presidente e fundador da companhia, Travis Kalanick, a deixar o cargo.
(O Estado de S. Paulo, 21/07/2017 – acesse no site de origem)
Nas semanas seguintes, dois famosos investidores do Vale do Silício —Dave McClure, da 500 startups; e Justin Caldbeck, do fundo Binary Capital — precisaram renunciar aos seus cargos após mulheres denunciarem terem sido vítimas de assédio sexual e sexismo quando se aproximaram desses investidores por motivos profissionais. Uma delas foi assediada enquanto conversava com o investidor sobre uma vaga de emprego no fundo que ele liderava, já a outra sofreu discriminação quando tentava negociar um investimento.
O jornal New York Times falou com mais de dez mulheres que foram assediadas no mercado de tecnologia em reportagem recente. O site .MIC listou depoimentos de outras dezenas de mulheres da área relatando todo tipo de assédio e discriminação.
Nunca antes se falou tanto sobre sexismo e assédio no setor de tecnologia. O momento é propício. Como bem destacou a publicação Backchannel, que faz parte da revista Wired, a escassez de profissionais de tecnologia empoderou essas mulheres. Hoje, elas podem falar sobre os abusos que sofrem sem precisar temer que isso leve ao fim da carreira profissional.
Apesar dos avanços, toda hora aparecem equívocos grosseiros na abordagem desse tema, especialmente em discussões lideradas por homens.
Interpretações equivocadas
O ator Ashton Kutcher, que também é investidor em startups, é um dos mais recentes exemplos do problema. Há duas semanas, ele publicou no LinkedIn algumas questões que ele considerava importantes para o debate sobre igualdade de gêneros na tecnologia. O post era um “esquenta” para atrair pessoas para um debate que ele iria promover por vídeo no Facebook.
A ideia parecia excelente, mas não demorou muito para o ator receber uma chuva de críticas nas redes sociais.
A primeira pergunta da sua lista já deixava claro um certo viés e falta de entendimento sobre os reais problemas que as mulheres enfrentam no mercado de tecnologia. “Quais são as regras para namorar no ambiente de trabalho? E para flertar? Quais são os limites claros?”, perguntou o ator.
Em um momento em que se debate casos graves de assédio sexual no mercado de tecnologia, chega a soar ofensivo que essas denúncias sejam associadas com a ideia de flertar e paquerar no ambiente de trabalho. Kutcher pode não ter tido a intenção de ofender, mas sua pergunta parecia associar denúncias de assédio e discriminação no ambiente profissional com um flerte casual.
Um pouco mais pra frente na lista veio outra pergunta duvidosa: “Investidores deveriam colocar dinheiro em ideias que eles consideram ter menos mérito para criar igualdade de gênero no seu portfólio?” A pergunta parecia insinuar que projetos feitos por mulheres são, efetivamente, inferiores ou precisariam de uma ajudinha para conseguir investimento.
No seu vídeo ao vivo no Facebook, Ashton Kutcher admitiu que a pergunta era apenas uma provocação e pediu desculpas. A conversa que ele teve com a investidora Effie Epstein, que trabalha com ele, foi boa. Ela mesma chamou a atenção de Ashton para os equívocos de algumas de suas perguntas e o ator pareceu fazer um exercício importante durante o vídeo: escutar o que uma mulher na tecnologia tem para dizer de boca fechada.
O problema da falta de empatia
Apesar dos avanços e do aumento do número de denúncias de casos de assédio no mercado de tecnologia, os homens do setor parecem ainda não entender quais são efetivamente os problemas que afetam as mulheres.
Não que não existam diversos homens falando sobre o assunto por aí. O problema é a falta de empatia e entendimento que os homens demonstram quando são confrontados com a questão da igualdade de gênero e assédio sexual.
O caso envolvendo o ator e investidor Ashton Kutchner mostra que ele precisou cometer uma baita gafe para fazer algo simples: escutar e tentar entender o real problema para que ele possa apoiar as mulheres que estão ao seu redor.
Esse tipo de gafe acontece com frequência. Em uma conferência recente sobre relações públicas nos EUA, por exemplo, um grupo composto por apenas homens foi convidado para discutir em um painel a questão da igualdade de gêneros no mercado de trabalho. Nenhuma mulher participou do debate.
Se isso já não fosse uma gafe suficiente, o conselho dado pelos participantes do painel para as mulheres conquistarem mais igualdade no mercado de trabalho foi um grande exemplo de total falta de noção sobre a questão. “As mulheres precisam falar alto e ser impor”, concluíram, como se fossem problemas como a timidez, a falta de assertividade ou agressividade que afetasse o desempenho das mulheres.
Se depois de todo tipo de acusação de assédio, discriminação e dados sobre a desigualdade de gênero terem sido publicados pela imprensa (além de debatidos à exaustão na internet) os homens ainda acham que o problema é que as mulheres não sabem falar alto e se impor, eu não sei mais o que precisa ser dito para conscientizar os homens sobre a questão e trazê-los para o debate.
Está aí a constatação, aliás, de mais um tipo de discriminação que as mulheres sofrem. A falta de credibilidade.
Uma questão de opinião
No dia em que o ator Ashton Kutcher publicou suas perguntas no LinkedIn, compartilhei com um amigo o post e comentei os equívocos de algumas perguntas.
Meu amigo imediatamente começou a defender o ator, dizendo que ele estava com o coração no lugar certo e tentando debater um problema importante. Eu expliquei que a intenção era mesmo boa, mas que as perguntas elaboradas mostravam como havia uma falta de entendimento sobre o tema.
Meu amigo novamente disparou que o ator estava cheio de boas intenções e que era um absurdo ele estar sendo questionado (interessante que o meu questionamento feminino pareceu agressivo para o meu amigo, enquanto ele foi incapaz de perceber a agressividade do questionamento que ele me fazia naquele momento).
Resolvi, então, apelar para a empatia. Relatei, enquanto mulher que trabalha no mercado de tecnologia dos EUA, algumas situações em que enfrentei algum tipo de preconceito ou dificuldade por trabalhar em uma área majoritariamente masculina.
Meus depoimentos foram ignorados e eu continuei ouvindo que o Ashton Kutcher era um cara bem intencionado que tinha tomado a atitude certa.
Meu amigo me conhece há tempos e nunca viu o Ashton Kutcher na vida. Ainda assim, naquele momento, o ator — um homem com quem ele nunca conviveu — teve mais credibilidade do que eu, uma mulher que ele conhece há tempos e que estava relatando suas experiências pessoais.
Um caso clássico de mansplanning, como diriam por aí.
Eu pergunto: tem como discutir igualdade de gênero com alguém que simplesmente não te escuta? Os homens frequentemente reclamam que as mulheres estão loucas e gritando acusações contra eles, mas eles mesmos não conseguem parar de falar para escutar o que as mulheres têm a dizer. E, quando finalmente escutam, em vez de tentarem entender o motivo pelo qual algumas situações são ofensivas para as mulheres, preferem se comportar como quem entende mais do problema do que as próprias mulheres, que realmente vivenciam a questão.
As denúncias de assédio e sexismo no mercado de tecnologia não são uma guerra contra os homens, mas uma guerra contra a cultura do estupro e uma estrutura patriarcal que já não cai bem em 2017.
A participação masculina nesse debate é essencial, mas para terem impacto os homens precisam ser capazes de fazer as perguntas que realmente importam: Como homens podem responsabilizar outros homens por atitudes sexistas? E o que eles podem fazer quando presenciam um colega fazendo comentários sexistas? Como criar real diversidade nas empresas? Quais são as barreiras que estão impedindo as mulheres de conseguirem mais empregos como engenheiras, mais investimentos para suas startups ou serem ouvidas em uma reunião? Por que essas barreiras existem? Qual o papel nos homens em criar essas barreiras?
São essas as reais perguntas que precisam começar a ser debatidas. Todo o resto me parece puro marketing.